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terça-feira, dezembro 20, 2005

Cânticos anónimos V

A verdura da kamanga


Hoje, (03.12.2005) a minha viagem até que foi de avião. Preferia que fosse de candongueiro para ouvir os inúmeros cânticos anónimos possíveis somente em casa de ninguém. Desta vez não. A distância que separa o Atlântico do nordeste do país tirou-me o gostinho que criei pelos mujimbos.
Fui ao terminal da SAL onde um trabalhador de uma diamantífera “despacha” os seus colegas e visitantes da empresa.
Um manifesto em lista dá acesso ao talão de embarque. Até aqui nada mau. O meu espanto foi, porém, saber que o abandono da sala de espera nunca é anunciado. Os passageiros têm de cercar “o homem da lista” para não perder o voo porque o "mwata" pode, quando quer, pôr outros nos lugares dos distraídos. E aconteceu mesmo com alguém que até conheço.

Quando comentei o que vi com um frequentador da Lunda-Sul a resposta seca foi:
_“Aquilo não é Angola, é muito concorrido e não se avisa ninguém”. Fiquei buamado.

Uma vez próximo da “mina”, já em território katchokue, deparei-me com um outro espanto.
- Um enorme planalto a esbanjar o verde.Um verde selvagem composto apenas de capim e árvores. Não se via, quer pelo ar, quer por terra, uma bananeira sequer.
Mais uma vez perguntei o porquê da incultura dos campos, e, novamente ríspida e pronta a resposta dos habitantes não se fez demorar:
-“Habituaram o povo a viver da kamanga e já ninguém quer esperar pela colheita”.

O canto que se canta em qualquer canto das Lundas é a kamanga, a ocupação das terras ancestrais pelas empresas e garimpeiros nacionais e estrangeiros, a extinção da agropecuária e a condenação à fome dos idosos, deficientes e mulheres que têm na prostituição e no comércio informal o único ganha-pão.
Vivi os dias que vivi, comi o que comi, mas tudo de fora. O pior é que nem uma pedra vi.
Ouvi no cântico dum idoso ovimbundu que “quando eles chegavam destruíam as lavras e até os bairros para cavar kamanga… quando acabavam deixavam tudo assim (aberto), mesmo quando íamos longe e eles descobriam que tem kamanga vinham de novo… até que parávamos também”.
Noutro refrão captei que “aqui escola para os filhos não tem, hospital também não. Medicamentos, mesmo, é tudo na praça da cidade. A pessoa pede emprego no governo também não tem. Se não tem filho que trabalha na kamanga, você fica só assim mesmo”.
No mercado paralelo de Saurimbo (Saurimo) vozes desafinadas desafiavam o sol e a chuva, que cai sem avisar, com outros cânticos à memória das filhas.
_"Assim que está a escurecer, daqui a pouco vão já começar a chegar das minas. É assim todas as sextas e sábados. Se trouxessem ainda comida era normal. É só mesmo disbunda e SIDA. É só mesmo assim…”.
Como o fel que inadvertidamente se mistura à jinguinga, em hora de fazer contas com a lombriga, sorvi o desabafo e deixei-o comigo. Somente comigo.
Uma vez no ar, de regresso a Luanda, deparei-me novamente com o verde que se espreguiça num vale sem que alguém se lembre em botar-lhe um machado, uma enxada ou uma catana para dar outro verde que pinte e encha os pratos vazios. "Tanto verde para tanta fome é realmente muita kamanga".

Por: Luciano Canhanga

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