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quarta-feira, dezembro 21, 2005

Cânticos anónimos VI

A minha nguvulação

Lembro-me de ter lido, ainda nos meus tempos de undengue, uma coluna sobre os chefes ou chefiação a que os angolanos estão sujeitos. Crónica ou artigo tão bem escrito, dele resta-me apenas a exactidão do colunista em enumerar quantos chefes tinha; uma vintena.

Classifiquei de imediato o jornal como “documento" e escrevi no topo "Não retirar da K”. Mas, quis alguém dar-lhe um destino por mim indesejado.
Busquei e rebusquei tudo quanto pude e não encontrei pista alguma que me permitisse citar com exactidão o autor do texto sobre os chefes. Disseram-me alguns próximos trata-se do Ismael ou Salas. Seja quem for, o meu reconhecimento pela "chuva que provocou o rio".

Quis agora que é chegada a minha vez de nguvular e de ser nguvulado descrever também até que ponto vergo o joelho para reverenciar.
Começo então pela casa da minha mãe que tem por hábito tratar o primeiro Neto saído do filho varão por chefe. Este rapaz de apenas oito anos é quem mais manda em mim. Ora cadernos, ora livros, ora BD, ora concerto de bicicleta, ora computador que ainda não dei, ora etc., ora vídeo game, enfim. Está descrito o meu primeiro chefe, o meu filho.

Ainda em casa tenho a chefe do governo que me exige sempre que quer o reforço do OGC. Entenda-se orçamento geral de casar. A chefe Elsa.

Fora do lar, mal saio, tenho na porta ao lado o chefe da célula e o chefe do núcleo. Se for cinco ruas mais adiante, no Comité Municipal, encontro outros dois chefes: O da Juventude e o do partido. A estes se juntam os chefes da província e seus adjuntos nos dois escalões. Ainda no partido, vou para o escalão nacional e encontro vários chefes. Os chefes dos meus chefes.

No campo académico, tenho o chefe de sala ou delegado e o chefe da associação de estudantes. Como frequento duas universidades, tenho quatro chefes, tirando aqueles que por mérito demonstrado ao longo dos anos de coleguismo ou consideração não deixam de ser chefes.

No serviço, tenho superiores hierárquicos que até ficam chateados quando não se prefixa a expressão chefe ao seu nome. Gostam do epíteto como se de nome próprio se tratasse: Chefe Amélia, Chefé Bibi ou chefe Dê. A estes se juntam o chefe de secção ou editor, o chefe de sector ou Editor-chefe, o director de Informação, e os demais directores que são três.
Ao nível de Estado tenho o chefe grande, a quem todo o país verga o joelho, aliás parte o joelho para a vénia.
Feitas as contas, tenho mais de trinta chefes entre os directos e indirectos.
Posto a reflectir, notei que cada um de nós tem um número exagerado de chefes a quem presta subserviência e sem poder reclamar. Apenas nos cânticos anónimos se ouve algo relacionado à chefiação, sendo o nome do Chefe grande o que mais soa nas canções.

Lembro-me que no tempo do Carnaval da vitória quase todas as canções levavam o nome do chefe. Em Calulo, no Carnaval escolar lembro-me termos cantado “Zuzéduardoé uol’ótuma kiambote, kolenu povué tuondó kina kiavulo...”.
Talvez uma cópia mal feita de um cântico original, talvez não.
Hoje, no candongueiro da Mutamba ao Rangel, um jovem introduziu na conversa ocasional o tema “chefe grande”.
Dizia o cidadão anónimo que “o Chefe inaugura demais”.
Uma senhora da casa dos vinte, mas com aparência de muitos partos pelo caminho, perguntou se “o quê que o presidente inaugurou e que não seria para ele”.

A resposta inesperada pela assistência de doze camaradas de viagem veio do cobrador: “os três bebés”. Levou tempo para me aperceber que o gerente do Hiace se referia ao edifício AAA inaugurado num dia em que o Primeiro Ministro teve de adiar o corte de fita do Instituto de Património Cultural para não chocar com o chefe grande que tinha um dia completo de “tesoura, fita e prato”.

Na conversa de candongueiro que geralmente não tem dono cada um foi apimentando do seu jeito, sempre na ânsia de puxar o auditoria para o seu lado. Já na paragem da cidadela entrou uma jovem que não deixando o “caldo” esfriar rematou:
-Sabem quem inaugurou as casas de banho (urinóis públicos) da Mutamba e do Porto? - O chefe!
Mais gargalhadas e mais banalização do papel dos chefes. Fiquei apenas sem conferir o desfecho da questão sobre “o chefe da casa de banho”, porque para mim a Cáritas tinha sido o fim da viagem.
Fiquei porém, com a lição de que é importante fazer-se uma boa nguvulação e boas inaugurações, porque enquanto for chefe lá em casa, da minha mulher, do meu filho e do minha irmã com quem partilho os cantos da casa, pode acontecer que me deêm champanhe e tesoura para cortar a fita no dia da troca da sanita que já não tem cor.
Por: Soberano Canhanga

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