Translate (tradução)

segunda-feira, março 10, 2008

TRANSFORMAR ARMAS EM ARADO

(Crónica de viagem)

Lembranças tristes da guerra para que servem?
Em museus talvez tenham alguma utilidade histórica, mas quando estendidas aos ventos, aos sóis e às chuvas, para quê mais cantar vitórias e chorar derrotas enterradas?

-Assim mesmo, procedem os ferreiros, serralheiros, funileiros e outros que se dedicam à transformação dos restos da guerra em algo valioso para a vida.

São incontáveis os carros militares, tanques e outras peças de artilharia pesada que os combates deixaram para trás e que seriam o constante cartaz de boas vindas àqueles que (re)descobrem as estradas d’Angola profunda.

Até a bem pouco tempo o cenário que nos era mostrado era exactamente este: Carros queimados, tanques destruídos, e outras peças de artilharia pesada ladeando as estradas de metro a metro e quilómetro a quilómetro, uma situação que tende a desaparecer.

Primeiro, pela acção positiva dos “homens das artes”. Funileiros, serralheiros, bate-chapas, entre outros que reaproveitam o que é possível retirar destes antigos meios de guerra, transformando-os em objectos de paz.

Estes homens, muitos deles levados às actuais profissões pela carência de quase tudo, não têm medido esforços, para com as chaparias de tanques e carros fabricar: arados, portas e janelas; com os chassis as pontes para transpor rios, entre outros fins. É no fundo também uma forma de aplicar os RRR: Reduzir - ReutilizarReciclar.

Uma forma inteligente de nos desfazermos das recentes tristes lembranças e tocarmos o barco para frente. Outra contribuição têm dado as construtoras das estradas que afastam estes pesadelos para longe da visão ou mesmo enterrá-los.

Bem haja ferreiros!

Luciano Canhanga

quinta-feira, março 06, 2008

DE LUANDA AO HUAMBO/KUITO

RASGANDO A SELVA I
Uma viagem inédita por terra, percorrendo centenas de quilómetros em estradas asfaltadas, terraplanadas e outras muito danificadas pela guerra e inacção humana, só se pode chamar aventura sobre rodas. Aliás, à primeira ideia de a fazer, o conselho foi desfavorável:

_ Toninho, vai de avião!

Teimoso, apanhei o autocarro Luanda/Huambo para depois fazer o Huambo/Kuito, num percurso total aproximado a 800 km.

Luanda/Maria Teresa (K-Norte) em Boa estrada, diga-se, foi o primeiro trecho a que se seguiu Maria Teresa/Dondo em estrada “andável” (muito estreita, porém já sem os buracos e em alargamento). O futuro pode torná-la numa “pista”, dizem os que a frequentam com regularidade.

Dondo/Kibala (K-Sul) é um trecho igualmente impecável sob responsabilidade da brasileira QG e que trás à memória dos mais velhos os tempos da “Junta”. Para os mais novos a lembrança é das manutenções que nos idos de 1980 trabalhadores afectos ao MCH efectuavam.

E seguimos viagem. Pelo caminho algumas paragens obrigatórias montadas pela polícia e sem explicação aparente. Zenza do Itombe, Desvio da Munenga/Calulo, só para citar exemplos. O pretexto é único: Dinheiro para alimentar os caprichos dos agentes da corporação.

-Sete mil. Pagar ou deixar a carta e apanhá-la em Calulo, disse descaradamente um sargento da corporação ao motorista, no desvio da Munenga.

Pretendendo evitar outros 42 km que levam à sede municipal do Libolo e o azar de encontrar o banco sem sistema para o pagamento da suposta multa, “paga” lá entregou o motorista a solicitada quantia aos resmungos.

A viagem retoma. Por enfrentar ainda os controlos do Kizouo e Nhia, antes do Waco Kungo. O sol atinge o “ponto G”, a traça apodera-se do estômago e a conversa bocal é sucedida pela conversa do motor a diesel até Kibala onde termina o novo asfalto. À música automóvel junta-se agora a dança dos buracos. Estamos a caminho do Waco.

A mesma QG e outras empreiteiras se esforçam em cumprir os prazos dados pelo governo, mas a chuva impede o andamento acelerado da empreitada. E as bocas voltam a ter motivos para comentar. A velocidade diminui e o sol acelera o seu passo para o poente. Passa-se pelo Waco, atravessa-se a ponte sobre o Queve e retoma-se a negrura asfáltica. Dizem os conhecedores da zona que assim seria até ao Alto Wama, Comuna do Londuimbali/Huambo, passando por Kassongue, Vila Franca, Ngalangue, entre outros aglomerados do Kuanza-Sul.

“Daqui também se vai ao Kuito passando por Bailundo”, aconselha uma nativa. Mas o anoitecer convida-nos, eu e meu tio Alberto, a seguir ao Huambo, cidade mais segura em termos de dormitório. A intuição transforma-se em razão, pois já passava da hora 22 quando o autocarro, com avarias pelo caminho, escalou a antiga Nova Lisboa, também em franca reconstrução.

E as primeiras informações davam-nos conta da paralisação da cidade no dia anterior, devido ao funeral do empresário Amões que morrera num acidente de aviação. Ele, contavam, era o maior investidor da província e da região central.

Entre sonhos e insónias a noite foi passada numa pensão citadina, com direito a pequeno almoço à saída (foi pena termos saido às cinco da manhã).

Já na sexta-feira 25 de Fevereiro, a maratona para o Kuito começou com os kupapatas (moto-taxi), do albergue à paragem dos carros.

Do Huambo à Vila Nova e Tchicala Tcholoanga a ferrovia de Benguela e os eucaliptos, que o ladeiam, apresentam-se como agradáveis companheiros de viagem que se prolonga até ao Katchiungo e Chinguar, perfazendo os primeiros 75 km do percurso, em estrada terraplanada. Daqui em diante, outros 75 km em território bieno.

A viagem mostra-nos obras e também desilusões. Muito ainda há por fazer. Caia chuva e a velocidade de 60/80 km/H reduziu-se para 20/30. Os buracos falam alto e o corolla quase rastejava. Precisamos de 3 horas para chegar ao Cisindo onde fomos acolhidos em apoteose pela família Salongue.

Luciano Canhanga

quarta-feira, março 05, 2008

DEMOCRACIA BI-PARTIDÁRIA

(Crónica de viagem)

Diz a teoria da comunicação que a Propaganda e o Marketing diferem uma da outra porque a primeira impõe conduta/comportamento e pretende objectivos a curto prazo.

Porém, ao longo do interior do país, sobretudo na região central de Angola, as duas formas de comunicação parecem estar casadas. Ou seja, a propaganda é também Marketing, na medida em que ela é feita não apenas para o hoje, mas também para colher amanhã.

As bandeiras partidárias, colocadas em quase todas as aldeias, têm como fim dizer a quem nasça e quem passe o que e quem elas representam, no caso o partido X ou Y, "marcando uma presença mental".

É assim que Mpla e Unita tentam perpetuar os seus nomes, suas marcas e seus ideais entre as populações da área mais habitada do país, o planalto, disputando (mesmo mudos) espaços territoriais e aglomerados populacionais. Nalguns casos esta disputa muda é notável em cada muro, faixada, rua, aldeia, lavra e até mesmo em descampados. Tudo serve para içar uma bandeira. Estacas, montanhas, cubatas, currais, etc. Quem viaja pelo interior contempla a beleza e assiste igualmente a esta luta fria de gigantes. Apenas os dois.

Mpla e Unita, poder e oposição, unicamente sós, num pais de duzentos partidos. Doutras cores, apenas tímidas aparições em cidades e vilarejos, sempre de forma envergonhada num mundo bi-polar.


Luciano Canhanga

terça-feira, março 04, 2008

KUITO/BAILUNDO/ALTO WAMA/LUANDA

RASGANDO A SELVA II

O regresso a Luanda foi surpreendente. Previa um trajecto semelhante ao anterior, revendo o troço Huambo/Alto Wama que a noite e o cansaço não permitiram ver. Mas quis o condutor da Hiace encurtar o caminho, para o gáudio da maioria, e contornar o Huambo. O meu objectivo era também ver coisas novas para contar, nada mal, e concordei.

Sete horas e trinta minutos. A mulher acompanha-me ao Cisindo, 2 ou 3 km da Cidade. Aqui, viaturas para Luanda, Huambo e outros destinos, aguardam paciente e ordenadamente por passageiros. A ordem de chegada é cumprid
a pelos condutores.

Sobre estrada esburacada e poeirenta, mas com asfaltagem à porta, transpomos marcos importantes. Primeiro o desvio para Chitembo/Kuando Kubango. Antes, passamos por uma ponte provisória que obriga o condutor a uma perícia. Um buraco ao longo da travessia tem de ser acertado ao meio da largura dos eixos.

O rio chama-se Kukema e lembra terríveis combates entre as forças governamentais e da rebelião nos idos anos de 1993 e 1997. Dos dois lados da rodovia objectos de guerra legados à história lembram combates mortíferos que nos levam à reflexão sobre o quanto perdemos ao longo de anos inglórios.

Os nativos esforçam-se em esquecer as mágoas e não comentam. Os visitantes também não perguntam , embora curiosos, evitando que alguém lance farpas. A única voz que se sobrepõe é a do motor diesel da viatura Hiace.

Mais adiante está o Chinguar. Aqui passará o comboio, na sua ligação ao Kunje, (outra localidade que a guerra tornou famosa) para abastecer a cidade do Kuito. São apenas 2 ou 3 km do Kuito ao Kunje.

Na vila do Chinguar o mutismo desaparece e contam-se pequenas estórias sobre os benefícios da paz e sobre as casas velhas que a juventude reclama a todo o custo para reabilitar, mas que o governo não dá.

Atravessa-se a ponte ferroviária e sugam-se mais alguns quilómetros. Não muitos e entramos na vila de Katchiungo, município da província do Huambo.

Aqui a construção de uma grande obra a mando do Ministério da Educação ressalta à vista.

_Um Instituto Médio, se calhar. Murmura-se.

A estrada não pára, nem o carro. Entre buracos e asfalto vai-se alterando a aceleração e o percurso conduz-nos ao Bailundo e não mais à capital do Huambo. O percurso é para mim novidade.

Por embalas e comunas, fazendas e casas de pequeno comercio rural ganham rostos.

De metro a metro estacas delimitam a nova largura da estrada. Dez metros de plataforma ao invés dos actuais oito. Reconstrução da via em curso até que atingimos um trecho da via pouco maltratado pelo tempo e inacção humana. Uma senhora da casa dos 35 solta a voz e resmunga no seu “portumbundu”.

-É graças ao mano Mais Velho que esta estrada ficou assim boa.

Insulto para alguns e elogio para outros. O auditório prefere que o vento se encarregue das palavras, o mesmo vento que leva a música tocada por um rádio tosco.

Terminado o bendito trecho, novamente se dança aos saltos. Adiante se vislumbra uma clareira.

_ É a pista do Bailundo, alertou o motorista, pelo que me lembrei lá ter estado por duas vezes.

No Bailundo contam-se também pequenas estórias sobre a pista, a morte de Valentim Amões que tanto investiu naquela circunscrição e que podia ali aterrar o avião que o matou, se a montanha não se tivesse antecipado. Fala-se ainda sobre o Bunker de Savimbi (na foto), e eu falo sobre a História da criação deste reino do Mbalundu: “foram os nossos ancestrais da Kibala que o fundaram”.

Uns crentes e outros descrentes, o vento mais uma vez se encarrega das palavras.

No largo cívico da municipalidade três placas indicam os destinos: Huambo, Mungo e Alto Wama.

Tomamos o destino frontal que vai ao Wama. De repente o telefone toca. Entre companheiros de viagem fazem-se caras dóceis e outras inamistosas. Levanto o rosto e cruzo olhares com uma bandeira da Unita. O toque de chamada do meu telefone era o hino do Mpla e entendi a mensagem.

A mulher que me pedira para que a pontualizasse sempre que chegasse a um sitio com sinal telefónico perguntou pela minha localização e o porquê do silêncio.

Argumento que no Bailundo só havia Unita (Unitel), telefone que estava sem saldo. O Mpla (Movicel) tocaria no Alto Wama uma hora depois.

ALTO WAMA/PEDRA ESCRITA

O 4 de Fevereiro estava ao meio. Mal entramos para a novel estrada, negra de riscas brancas no meio e laterais, o polícia mostra ser a sua vez de “matar a sede”. Pedem-se documentos do condutor e da viatura mas parecem dizer menos do que mil kuanzas. O motorista desfaz-se dele “pagando”.

Era a segunda vez naquela viagem e outras tantas se seguiriam no Waco, Kibala e desvio da Munenga. Desta vez fico na aldeia de Pedra Escrita onde reside a minha mãe.

O relógio marcava 16 horas. Cheguei. Meu espanto foi que o bairro estava reunificado. É hoje apenas uma unidade que dizem ter sido nada fácil. A minha curiosidade procura pela escola e o centro médico que julgava existirem e a população responde que não havia.

Enquanto aguardo pelo regresso da “minha velha” que foi à lavra, recordo os anos da minha primária, dos quilómetros percorridos à pé, das escolas construídas com adobes feitos pelos alunos mais velhos e pelos pais, das carteiras de munzaza, das lavras dos professores que cultivávamos e das palmatórias na hora da tabuada, e resmungo.

-Como isso regrediu! Bons valores diluíram-se com a guerra e já ninguém quer saber do futuro!

Luciano Canhanga

domingo, março 02, 2008

OS SENHORES DA OBRA

RASGANDO A SELVA III

QG, MC21, CIF, BCOM, entre outras construtoras, são nomes que fazem estórias e que deixarão história sobre a reconstrução das estradas angolanas.

De Luanda ao Dondo, do Dondo à Kibala/Waco Kungo/Alto Wama/Huambo/Bié, enfim, toda Angola, até onde pára a "civilização universal", são milhares de quilómetros em reconstrução e construção, serpenteando a selva.

Montanhas rasgadas, margens fluviais unidas ou reunidas, enhãlas (anharas) ou prados cortados, planaltos trepados, enfim. Uma Angola que ajudam a reencontrar-se.

Assim é a reconstrução do país saído de uma guerra de 41 anos (1961/2002) sem grandes obras e em muitos casos sem manutenção sequer. Uma reconstrução que se canta e conta sob várias versões e em várias línguas que a assiste.

O objectivo maior é fazer e refazer, permitir a comunicação e juntar povos. Aldeias antes ilhadas estão hoje unidas e fornecem ajudantes para as grandes obras de restauro. “Serão os mestres do amanhã e que garantirão a manutenção e continuidade da empreitada”, desabafa um encarregado brasileiro abordado sobre a mão de obra local.

Pois é. É a mais valia que se espera da cooperação estrangeira. Para quem tem 1.246.700 km dilacerados pelo conflito é tanta empreitada para poucos obreiros.

Bem haja!

Luciano Canhanga