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sábado, março 01, 2014

CUIDEM DE VÓS E CUIDEM DA VOSSA ALDEIA!

- Iswaswa mu haxi, ka! (lixo no chão, não! A frase em língua bantu, ucokwe, falada no nordeste de Angola, difundida por colunas altifalantes vai ecoar por muito tempo naquela aldeia e redondezas, pois o público alvo foi, maioritariamente, crianças e adolescentes que tiveram um sábado diferente, no primeiro dia de Marco de 2014.
Saypupu é uma aldeola que fica há 34 km de Saurimo, a capital da província angolana da Lunda Sul. É o aglomerado populacional mais próximo da vila mineira de Catoca que se ergue, com a actual configuração, desde 1995. Apesar de no tempo pré-independência se ter feito exploração diamantífera residual na actual mina de Catoca, a comunidade de Saypupu é preexistente à exploração mecanizada do kimberlito de Catoca que dá nome à maior diamantífera angolana.
São pouco mais de 50 famílias que vivem da agricultura de subsistência, caça e pesca. A fauna e os recursos piscatórios são abundantes, mas o crescimento populacional, fruto, em parte, da melhoria das condições sanitárias faz da comunidade uma das mais carenciadas.
Quem vai a Saypupu não precisa de inquirir os aldeões para notar que há uma taxa de fecundidade e de natalidade elevada. Todas as senhoras apresentam-se com crianças ao colo, sendo que a maternidade começa na adolescência.

Segunda é uma das mães de Saypupu. Dança embriagada com a filha às costas. A menina, com um ano e meio de vida aproximadamente, está acometida de um furúnculo na genitália. A mãe, há pouco saída da adolescência, mostra-se menos preocupada com o que se passa com a filha. Ensaia toques de cyanda, a dança local, ao som alto espalhado  por colunas montadas a propósito da campanha de sensibilização sobre as doenças provocadas pelo lixo nas comunidades. Segunda dança. Nas costas, a criança geme de dor.
- Tenho 20 anos e sou mãe de cinco filhos. – Disse quando perguntada por uma das minhas colegas que comigo foi à campanha de recolha de resíduos sólidos e sensibilização sobre os perigos do mau manuseamento do lixo.
Puxei pela cabeça para compreender com quantos anos Segunda se tornou primípara e qual tem sido o espaçamento entre os filhos. O meu esforço só teria compensação se a voltasse a perguntar, algo que achei deselegante e incómodo. Preferi ficar à fala com os meus botões.
Como Segunda, há outras senhoras que dançam ao som da cyanda e do ku duro. Outras mulheres que se tornaram mães precoces e que estão divididas entre recuperar a mocidade  adiada e a maternidade exigente. O álcool, consentido pelos maridos, torna-se o refúgios para uns e para outros.
Mais despreocupados estão as “ana jo” (crianças). Prestam atenção às explicações dos palestrantes, acompanham os visitantes voluntários na campanha de limpeza da aldeia, seguem os passos, conversam e também dançam. Dançam a tradicional cyanda e dançam também o “do cotovelo”. Dançam alegres, despreocupadas e inovadoras como as outras crianças das médias e grandes cidades iluminadas e inundadas de veículos automóveis e salões para festas. Aqui não. A sombra de duas mangueiras gémeas é o salão. A picada que recorta a aldeia em dois blocos é riscada pelas rodas estreitas das motorizadas. As crianças falam português, a língua da escola, mas é em ucokwe que todos mais se entendem. Por isso, o discurso é bilingue para que todos percebam o que se pensa e o que se diz.
- Há água potável que sai da vizinha vila mineira, mas falta ainda a energia eléctrica pública e um centro hospitalar. Faltam também os mosquiteiros. - Apelou o secretário da aldeia, sempre atento aos sinais do soba, o seu chefe.
Ouvimos os recados transmitidos de forma implícita e explicita. A responsável pala área social da empresa explicou os esforços que o Governo e  a companhia fazem junto das populações para inverter o quadro.

- Sabemos que as aldeias à volta da nossa empresa têm muitas necessidades. Entendemos as vossas reclamações, mas temos de lutar juntos. Não é possível colocar tudo o que pretendem em aldeias muito dispersas e pouco habitadas. É preciso juntar as aldeias para que um único posto médico, uma escola, um fontanário ou um Centro Infantil possam atender muitas pessoas. Há um projecto de unificação das aldeias que o Governo e nossa empresa já apresentaram aos sobas. Precisamos do apoio dos sobas e das populações para realizarmos este projecto que nos vai facilitar a todos. – Concluiu, agradecendo e apelando ao início da campanha.
Vassouras, pás, sacos de plástico, tambores e baldes para o depósito de lixo. Antes a distribuição de luvas de borracha. Todos. Quase todos, com excepção do soba que não vi participar da campanha de limpeza. A equipa visitante tinha de tudo: cronista, fotógrafo, camarógrafo, desportistas, assistente social, avaliador de diamantes, enfermeira, funcionários administrativos, técnicos de segurança laboral e segurança patrimonial, engenheiros, tradutores, etc. Uma equipa recheada. Os aldeões também eram muitos, embora as crianças, adolescentes e alguns jovens se tivessem  destacado. A maioria dos pais e as mamãs de Saypupu continuaram na sobra das mangueiras,  dançando ou se dirigiram aos seus aposentos, assistindo, na sombra, a recolha dos resíduos que eles mesmo espalharam.
Hora e meia ou duas de labuta intensa: desenterrar, resgatar entre o capim, recolher plásticos, vidros, tecidos, pilhas e outros resíduos que são, geralmente, arrastados pelas águas pluviais até ao rio que serve de fonte de abastecimento para a vila mineira e a aldeia.
Quando o sol se mostrava mais forte do que os homens acossados pela sede e pela fome, a música que sempre acompanhou os obreiros cedeu lugar à voz falada ao microfone.
- Vamos lavar as mãos com água e sabão. - Um homem e uma senhora fizeram um coro desafinado, imitando o Pedrito do Bié.
- Se você pegou no lixo, lava as mãos com sabão.
- Se você pegou na areia, lava as mãos com sabão…
- Lava, lava, lava, lava. Com água e sabão!
Apelo feito, apelo cumprido. De repente, uma fila junto à viatura que levava uma pequena cisterna. Todos lavaram as mãos com água e sabão para se refugiarem, posteriormente, à sombra das mangueiras gémeas onde a música e a dança prosseguiam.
Aos trabalhadores foi servida água mineral, leite de soja e pães. Os que não trabalharam também se meteram na fila e todos comungaram daquele pão e leite de soja. A festa tornou-se geral.
- Iswaswa mu haxi, ka! (lixo no chão, não! - Voltava a apelar-se, ante a existência de garrafas e plásticos em área já limpa. Mais uma recolha e outros apelos.
- Iswaswa mu haxi, ka!
Quando o roncar do estômago e a dureza do sol celebraram casamento, expulsando os visitantes, não restou outra solução senão o "até breve"!
Os tambores ficam para depositarem o lixo caseiro. O carro virá recolher uma vez por semana. Cuidem de vós, cuidem da vossa aldeia e lembrem-se sempre:
- Iswaswa mu haxi, ka!

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