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domingo, maio 10, 2015

ME TRAMANKARAM MÔS DODÓS…


Embora não se saiba quando, precisamente, aconteceu essa estória do tramankanso dos dodós, o “fala que fala” apimentado à moda angolense já leva tempo. Ano e meio, mais ou menos.

A cena deu-se entre dois homens e duas senhoras que desenvolveram uma amizade quase parental. Os homens tratam-se por pai e filho, mesmo vivendo, o mais velho, kota Agê, na Tuga e o mais novo, ndenge Dimuka, originário e residente nas terras de Ngola, junto ao maior ribeiro que empresta o nome ao papel moeda. As senhoras, uma, a Kaxinda, diz-se filha de Dimuka, embora se tenham conhecido virtualmente e nunca se tenham avistado "caralmente" como diz o pretenso mas assumido pai. A outra, Dina, também conhecida como “tia dos dodós”, é tuguesa que faz vai e vem, levando umas imbambas trocadas entre o também tuguês Agê, o filho Dimuka e a neta Kaxinda.

Certo dia, Dimuka precisou de livros e pediu-os ao pai que os custeou e os enviou por correio da Tuga às terras de Ngola. Embora sobrevivendo da reforma, Agê, na sua mania da geração dos valores e desprimor às moedas, acabaria por relutar em passar a factura ao filho.

- Olha filho, já tens os dois volumes no correio. Pena é que o custo da transportação é tão alto quanto o da aquisição, mas vais gostar. _ Agê  recomendou a atenção de Dimuka ao post box nos dias subsequentes.

- E quanto te devo, ó pai? É preciso que as contas batam certo para que me possas voltar a ajudar, apelou o filho mesmo sabendo que só muito dificilmente receberia a factura com todos os cêntimos.

- Ó filho, não te preocupes com o dinheiro. Já tive algum e fugiu todo. Os meus amigos e os filhos, biológicos e afectivos, é que me dão a graça de viver, mesmo sem as coroas doutro tempo. _ Escapou Agê.

Dimuka, sabendo do custo dos dois livros, multiplicou-o por dois e cuidou de arranjar os dodós equivalentes na moeda tuguesa. E quase conseguia fazer a operação de envio digital se não fosse o aperto que os banqueiros afinaram às remessas para fora. A crise do ouro negro tinha transformado os dodós em moeda rara quer nas terras de Ngola quer nas de Camões e arredores. Dimuka teve de procurar por Dina dos dodós, que estava de malas aviadas para a antiga metrópole, a fim de levar as apetecíveis verdinhas embrulhadas num lencito de seda perfumado a preceito e as entregar ao seu benquisto pai.

- Coisa que vai à estranja tem de chegar bem cheirosinha. _ Disse para si mesmo Dimuka, antes de entregar a encomenda.

- Podes confiar, Sô Tor., Tão logo baixe o pé no Figo Maduro (nome aeroporto) eu ligo ao teu papai a informar e a combinar o encontro. _ Disse a mulher banhada de satisfação.

Trocaram cortesia e sorrisos. Tudo caminhava a preceito. No dia seguinte, Dimuka recebeu uma chamada a confirmar que Dina tinha chegado bem e falado já com Agê. Dimuka esfregou as mãos de contente. Mais ainda quando recebeu os agradecimentos do pai, embora tivesse terminado com a sua célebre frase, já canção, "o dinheiro faz pouco na minha vida". Tanto de um lado quanto do outro reinou a sensação de confiança.

- O infante é de palavra. Meninos assim é que dava para adotar na juventude. _ Terá desabafado Agê ao desenrolar o lencito de seda carregando umas folhinhas que valem ouro.

- Esse kota é mesmo um tuga mwangolizado. Quem me dera que tivesse ficado connosco quando se deram as vundas do tunda mindele? _ Desabafou Dimuka que me contou presencialmente a sua versao dos factos.

Mas não era tudo. Kaxinda, candidata a escritora, tinha contas por pagar numa editora livreira da estranja e debatia-se com a carência de folhas verdes decoradas com bandeira do tio Sam. Já o tinha comunicado ao pai adoptivo Dimuka e ao vovô Agê que prometeram "ajudar na medida do possível", mas num tempo que não se encurtava.

Numa altura em que Kaxinda desesperava, Agê deu ar de sua Graça. Ligou à Dina pedindo-lhe se podia levar os dodós de volta às terras de Ngola e, desta vez, os entregar à Kaxinda. Conseguido o agrément, telefonou à neta:

- Ove lá, minha neta, teu pai pagou-me os livros mas vou te enviar o dinheiro para ajudar no teu livro. São três folhinhas que valem pouco mas que ja dão um pequeno impulso. Guarda sigilo e não lhe digas nada, está bem? Boa sorte. Uma dona, a Dina, mulher linda séria e inteligente, vai te contactar quando chegar por aí. _ Segredou Agê, ao que mantiveram, neta e avô, a conversa longe de Dimuka que continuou a sua vida e a  sua interação ora com o pai na estranja ora com a filha incógnita que reside a 1200km de distância.

Terminada a transumância invernal, Dina regressou ao antigo ultramar onde decidiu juntar patacas, sendo surpreendida, ao que se conta, com a subida vertiginosa do custo de vida e cada vez mais difícil acesso às verdinhas.

- Estou nas margens do Kwanza onde é esse rio quem todas as contas paga, vou levar à neta do Agê alguns litros dessa água milagrosa e fico com as folhas verdes, verdinhas como o café ribeirinho do Kwanza. _ Filosofou Dina dos dodós.

Na manhã do dia seguinte, Kaxinda, que já sonhara com os dodós vindos da Tuga, receberia os litros do Kwanza.

- Ei-los, filha. Foi teu avô q'os mandou p’ros netos, os teus filhos. _ Atirou Dina esboçando um sorriso matreiro.

- Kwaaanzas, mô Deuju?! E os môs dodós que o vovô me segredou? Ai wé, Ngana Nzambi, me tramankaram mbora môs dodós do livro na Tuga...

E foi esse o grito que se ouviu de Kabinda ao Kunene e da Matamba a Galiza. Já correu muito tempo mas o “conta que conta” vai avivando a cena e com novos detalhes ajindungados.


Nota Prévia: tramankar é um termo do calão luandense do séc. XX que equivale a furto ou apossar-se de algo alheio sem que haja contacto com a vítima. Texto publicado pelo Semanário Angolense a 09.05.2015.

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