Translate (tradução)

sexta-feira, agosto 28, 2015

UM CASÓRIO INOVADOR NA KAMUNDA

Conheceram-se no tempo da guerra fria, na República da Kamunda, quando Kapesi se dirigia ao serviço e Boana para a escola. Ao primeiro olhar, parecia visgo, os vulcões até então adormecidos derreteram montanhas, soltaram lavas e perfumes, aproximaram-se e como pessoas que se faziam ideia beijaram-se perdidamente.

- Não precisas de dizer-me agora para aonde vais. Levo-te a qualquer sítio, pois minh'alma diz que és tu o meu destino. - Atirou Kapesi, possuído de romantismo.

As palavras caiam-lhe como chuva de Abril e ela com o ouvido apurado, um planeta de receptividade e atractividade. E foram, caminho fora, falando cada um de si e do tilintar dos seus corações.

- Jovem, preciso de saber se cruzaste a minha vida para um propósito ou apenas para teres mais uma vítima? - Questionou Boana, certa vez, já amarrada às algemas românticas.

Como já disse, decorria a guerra fria daquele tempo que não era um conflito declarado entre as duas principais tribos da República da Kamunda, os vakwombwelo e os vakwonano, que até viviam em paz quase perpétua, interrompida apenas, de forma esparsa, em momentos de cruzamento matrimonial entre os vakwanano, povos do norte da Republica da Kamunda e os vakwombwelo, mais ao centro da Kamunda.

Em questões casamenteiras, os primeiros preferiam o cumprimento de suas tradições em detrimento dos procedimentos moderno-ocidentais ou, na melhor das hipóteses, combinavam a tradição bantu e as inovações alheias trazidas casa adentro pela luz da televisão. Os vakwambwelo habitavam um território plano e alto, irrigado pela natureza, onde abundava gado, cereais e batata do reino de sua Majestade D. Afonso Henriques. Eram também muito apegados à sua cultura e tradições, algo distinta no rigor da aplicação, dos seus vizinhos vakwonano. Os vakwombwelo eram povos muito viajados pelo antigo Reino da Kamunda, queridos por todos os empregadores, devido à sua entrega, elevado grau de comprometimento e alguma mansidão derivado do apego à sacra-palavra. Eram também muito escolarizados pelas missões evangélicas, fazendo-os intermédios entre o conservadorismo e o assimilacionismo a que a sua estrutura organizacional estava exposta. O conservadorismo de ambas tribos que faziam história na República fez com que o namoro de Kapesi e Boana fosse visto com algumas reticências de ambos os lados.

- Mas esse moço que até o irmão kasule já lhe coou com dois filhos, achas mesmo que será bom genro? - Perguntou certa vez o avô Menso Mankala, para acrescentar: Boana, continuadora da minha tribo, alguma vez já ouviste o acusarem de paternidade em algum lugar? Alguma vez já ouviste um zum-zum sobre amigamento dele ou coisa parecida? Desconfia, neta. Homem com estudo, casa própria e boa família, como me contas, não sobra como o jovem de que me falas. - Desconfiou prevencionista Menso Mankala a quem estava confiada a educação de Boana.

- Pai, menos dia menos noite, vou partir. A minha doença é irreversível. Cuida da sua neta até "lhe" entregar "no" marido, assim como cuidará das minhas irmãs. - As palavras de Franque ecoam ainda frescas e de forma insistente nos ouvidos de Menso Mankala, sempre que o assunto é namoro e constituição de lar por parte da neta.

- O que meu filho me pediu tem de se cumprir, custe o que custar. - Dizia para si mesmo, custando-lhe já o epiteto de "O Dificultador".

Do outro lado, as desconfianças e incertezas também faziam morada. Os vakwombwelo encaravam a questão "trabalho e sorriso" por parte de uma nora como primordiais.

- Mulher tem de rir. Tem de conversar. Nora que te mostra dentes é mais do que uma tristonha que te ofereça um banquete. - Costumava desabafar Kasova, a tia mais velha de Kapesi. E, era exactamente, esse sorriso escondido de Boana, embora não ausente, que fazia os da tribo vakwombwelo se posicionarem no NIM no dia em que o jovem reuniu a família para anunciar:

- Pais, mães, manos e manas, já passei a linha dos trinta. Já tive algumas experiências e tentativas de vos apresentar uma nora e cunhada. Acho que com a formação que consegui, casa própria no Kipedro e emprego que já  tenho, é chegada a hora de atar o nó.

Ao inaudito discurso de Kapesi seguiram-se assobios, mais dos sobrinhos e cunhados do que da velha guarda que esperava ver para comemorar.

Os "acorrentados e cercados pelas lavas do vulcão amoroso" tinham combinado abrir o jogo às famílias no mesmo dia.

Boana fez o mesmo com os avós. Menso Mankala não conteve a indignação e teve mesmo um pequeno deslize que só não desembocou em incidente diplomático-familiar porque o amor que juntava Kapesi e Boana não era amarrado com corda. Era mesmo com laço de aço.

Kasova, a tia de Kapesi, e os seus também se interrogaram vezes tantas sobre aquela escolha, exactamente na tribo que se dizia "mandavam a noiva calçar salto alto e juntavam quatro filas de grades até ao tecto da casa".

- É só mesmo já nessa tribo que pedem gerador e terreno com pedreiro chinês que encontraste mulher para casar? Por que não vais ainda lá na embala do avô Kacyopololo ver se sobrou lá uma kafeko da nossa tribo ou de tribo com costumes aparentados? - Questionou Kasova a matriarca da família Kapesi.

No dia A, ou seja, no dia da apresentação, desfilaram adágios de parte a parte.

- A nossa filha está preparada para ser boa esposa e tem de sair daqui só quando eu quiser e com pedido bantu, casamento na igreja e conservatória. - Atirou um dos tios de Boana.

- O Kapessi é um homem preparado e sabemos que cumprirá as suas obrigações para honrar a sua cultura, seus sogros e sua família. - Ripostou JoSa, cunhado mais velho que na ocasião representava o sogro.

O bairro Kipedro, onde viviam Boana e Kapesi, era uma espécie de bairro franco. Lá estavam uns poucos conservadores que se tinham rendido à vida na verticalidade e uns tantos jovens que tinham abdicado da vida quintaleira das aldeias tradicionais da Kamunda. Naquele dia da confirmação do namoro de Boana e Kapesi, Kipedro estava agitada, só faltou o quintal para juntar as famílias vakwonano e vakwombwelo que desfilavam, através de representantes legais dos dois lados, bíblias de adágios e citações.

- Vamos fazer o pedido com os requintes que quiserem mas o casamento só quando o sol mostrar os primeiros raios. - Atirou um dos primos de Kapesi que ignorava o tratamento diplomático em conversas matriciais.

- Raiar do sol? Se vosso filho tentar vai dar multa que vocês não imaginam. - Defendeu-se Menso Mancala.

Com sabedoria, a diplomacia se sobrepôs aos argumentos apenas orgulhosos e despidos de razão. A tarde terminou em festa que adivinhava outra maior no dia P, ou seja, dia do pedido.

Com uma lista recheada aos olhos dos vakwambwelo mas simplificada no dizer dos vakwanano, as partes marcaram a data para o encontro do pedido de noivado que juntaria outros rostos e outro desfilar de rosários.

- Confiamos nas vossas palavras e esperamos que a nossa tradição seja cumprida geometricamente. - Recomendou Menso Mancala à família de Kapesi, ao que JoSa respondeu apenas com um aceno de cabeça, carregando a lista que lhe pesava como pedra.

Chegados à casa, os vakwombwelo, entre a aceitação e a reclamação, começaram por esboçar o plano de resposta.

- Vamos cumprir, mas também queremos ver o sol a raiar antes de nos metermos à estrada. - Aconselhou Phande, outro dos cunhados de Kapesi, ao mesmo tempo que distribuía incumbências para aliviar o peso pecuniário que recaía sobre seu cunhado de eleição. "Eu responsabilizo-me por isso e o fulano por aquilo", continuou Phande, perante a aceitação da família centrista.

O tempo foi juiz e advogado. A lista de incumbências para o pedido tradicional estava fechada. Os fatos, as grades, os vinhos, bijuterias e outros adereços desconhecidos dos infantes desse tempo aguardavam apenas pelo dia P que coincidiria com o casamento civil. À data, o sol já raiava, mas escondido ainda. Era apenas um laranja solar no fundo do ventre. O debate, à distância, via recados levados e trazidos pelos noivos, passou a ser “casar-se-ia antes no civil e depois no tradicional” ou o inverso?

Pela primeira vez, os vakwombwelo ganharam o desafio que os levaria a esquivar possíveis multas pelo alvitre de "ter entrado pela janela".

- Quando chagarmos ao pedido, ela já será tua esposa e nenhum outro pedido de multa terá força ao pé da lei ordinária. Será essa a nossa posição e é consabido que, podíamos até ir de mãos a abanar, sempre nos receberiam e te consagrariam como genro. - O discurso de Phande teve a concordância de JoSa e demais familiares de Kapesi que se manteve obediente às instruções e pouco interventivo.

No dia P, Kapesi que vivia em Kipedro, nova cidade da capital da Kamunda, pegou na sua teó (trotinete rudimentar) e foi ao encontro dos padrinhos que se encontravam na conservatória do registo civil, onde aguardaria pela sua dama. Recebeu aplausos pela inovação e, por fim, Boana como sua prometida Eva. Fizeram juras e trocaram o primeiro beijo público e oficial.

- Juro ter-te na saúde, na doença e na dibinza por todos os dias da minha vida. - Prometeram.

Seguiu-se o preceito tradicional vakwonanwense já sem o peso simbólico doutros eventos. Aqui o ocidente se tinha antecipado, embora tudo quanto tivessem solicitado em carta estivesse literalmente satisfeito. Ao pedido tradicional, Kapesi foi ao lado da mulher, seguindo-se, num mar de alegria contagiante, a cerimónia religiosa de onde Kapesi sairia ao volante do Ferrari decorado ao engodo de Boana.

E cantava-se "kyese vo kakyese ko (alegria ou não)?

- Kyese! - Respondia-se com euforia. E fez-se nova festa!

As mesas estavam caprichosamente marcadas com nomes de aldeias e embalas vakwanano e Vakwombwelo para a alegria dos mais conservadores e petizes que aproveitaram saciar suas sedes com bebidas diversas e geografia de origem.

Fronteira, Kimbele, Damba, Negaji, Zenze, Sasa, Sanza, Kibokolu, Makela, entre outros topónimos nomeavam as mesas que acolheram a familia de Boana. Do outro lado, idosos e infantes viajaram no tempo e na geografia para relerem Kambweyo, Yeyele, Njimba Silili, Ndulu, Katrayo, Kantifla, Cingwali e outros.

E voltou a cantar-se, lado a lado, ensanju e kyese!

NOTA: Publicado pelo Semanário Angolense de 05.09.2015

sábado, agosto 22, 2015

OS PARDAIS DA MINHA CASA


Não sei, na verdade, quem chegou primeiro ou quem chamou a quem. Quando cheguei era apenas um descampado cheio de lixo, relva rasteira, sem árvores, abundando moscas, baratas,  ratos, gatos e cães desgovernados.
Os pombos, cegonhas e passarinhos vinham apenas debicar os vermes e arroz que se achava entre o descartado nauseabundo, com os vizinhos a fazerem do espaço seu cemitério de imundície.
Começou a obra de construção e com ela cresceram as árvores frutícolas e decorativas trazidas da distante Lunda, algumas de origem americana.
Hoje, casa e árvores atingem dez metros, quase, quase. E nelas, os voadores penudos encontram paz e pousio. Desistiram os meninos andrajosos que com fisgas faziam dos passarinhos uns fugitivos permanentes, muitas vezes encurtando-lhes a vida.
Os pardais, inicialmente um casal que havia construído o seu ninho no eucalipto, cresceram para cerca de uma dezena.
No espinheiro que plantei atrás do quintal mas que estende seus galhos e sombra pelo quintal, notabilizam-se dois ninhos que quase voam ao vento sem se desprenderem e, às manhãs, ao nascer do sol, os dois casais e sua prole inundam o silencio matinal com seu chilrear.
Enquanto os pardais adultos buscam por comida, os pardalitos pulam de galho em galho ou de árvore em árvore do meu quintal (encostadas) para endurecer as asas.
E o ambiente fica poluido, desde o alvorecer, com o txi-txi-txi... txe-txe-txe... em saudaçao ao rei sol.

sábado, agosto 15, 2015

O ESCURINHO DE BOTOMONA

O homem vinha cansado e saudoso dos seus. Marcava o tripper da sua viatura 948 quilómetros percorridos. Havia feito mais de catorze horas ao volante e perto de dez paragens, entre aquelas orientadas para a fiscalização preventiva do veículo e do seu condutor, ele no caso, e outras em que simplesmente abrandou para saudar as autoridades rodoviárias, falar sobre o percurso e reportar o que de importante encontrara ao longo do trajecto.

Botomona, ficava a menos de 70 quilómetros do destino e já sentia o cheiro do peixe banana que a mulher preparara para o seu jantar.

O Escurinho (nome de ocasião), dois riscos no ombro, altura de basquetebolista e negrura de mostrar apenas os olhos e os dentes quando falasse à noite, estava dum lado e do outro o interpelado Mona a Chico, o viajante.

- Boa noite, senhor automobilista. – Saudou Escurinho, depois da devida sinalização para abrandamento e acostamento da Maria (viatura).

- Boa noite chefe. - Respondeu Mona a Chico, esperando pelas perguntas da praxe cujas respostas tinha já decorado.

Do nordesta a Botomona, não se tinha deparado com acidente ou incidente digno de realce. Apenas ferro retorcido já com curva de idade que as queimadas do capim iam destapando à beira da rodovia.

- De onde vem e como está a ser a viagem? – Voltou a questionar o sargento da polícia rodoviária.

- Venho do nordeste e não me deparei, ao longo dos quase mil quilómetros com incidente ou acidente grave. Apenas a estrada é que vai cedendo aos buracos. Os vossos colegas, em todas as províncias por onde passei, também estão com uma atitude preventiva irrepreensivel. - Elogiou o condutor, enquanto juntava a papelada.

- Sim. Por cá, é por causa da peregrinação à Muxima.- Justificou Escurinho.


O interpelado exibiu os documentos da viatura e os dele e ligou-se à rádio desportiva para acompanhar os resultados da ronda do Girabola. Havia já hora e meia que apenas se ouvia música e vinheta sem locutor para anunciar os resultados da ronda ou a hora que corria ao desgosto dos expectantes amantes da bola na relva.
- Alguém vai "mamar pastilha" na rádio Meia Dúzia! - Disse para si mesmo. Se calhar o locutor substituto da tarde desportiva se tinha ausentado sem que o substituto chegasse, acrescentou em suerdina.

Mona a Chico era conhecedor das andanças da Rádio e estava familiarizado com aquilo. Pena foi não ter ninguém no carro para ouvir o seu esperiente desabafo, para além da própria "Maria" (viatura) com quem conversara durante todo o trajecto. E não tardou para que o interlocutor fardado que fiscalizava os documentos aparecesse com outra questão.
- O seu seguro está caducado e isso dá multa. – Disse ele, com o bloco de notificações e esferográfica à mostra, em sinal de força persuasiva.

- Repare bem, senhor sargento. Renovei o seguro contra terceiros em Maio deste ano e vai até 2016. – Disse-lhe Mona a Chico, exibindo o certificado.

O homem da estrada acendeu a lanterna, confirmou e desculpou-se. Mas sacou da cartola outro gato.

- Onde está a taxa de circulação, senhor automobilista?

Já a desconfiar que havia gato escondido com rabo de fora, o interpelado ganhou coragem e decidiu explicar’-se tim-tim por tim-tim.

 - Senhor Sargento, comprei o carro em Fevereiro deste ano e, tanto quanto sei, o seguro obrigatório tem a ver com o ano derradeiro.

- Mas o livrete tem a data de Novembro de 2014. - Voltou a colocar o homem, aparentemente sedento de alguma inconfissão.

Com a paciência já em falta o "amigo da estrada" sacou da factura e da guia de entrega da viatura pela concessionária e juntou aos documentos em posse do fiscalizador.

- Chefe, eis os documentos de compra. Aqui tem a data em que o carro saiu do parque para a estrada...

O homem, farda azul escuro e colecte reflector verde com barras alface, marcou dois passos atrás, acendeu novamente a lanterna, rodopiou sobre si mesmo e voltou a tirar a sua última cartada.

- Tem mala no banco traseiro que em termos do novo código é bagagem. Está em conflito com o artigo 56 e vou ter de multá-lo.
Habituado a tratar a estrada por tu, quer na sua viatura quer em boleias, aquela colocação do fiscalizador, parecia ter caído dum planeta ainda em estudo. Mona-a-Chico teve de sorver ar fresco, daquela brisa que se forma entre o Atlantico e o Kwanza, para ganhar força e continuar o debate que quase lhe ia algibeira adentro.
- Posso ver a letra do artigo? – Solicitou Mona a Chico, já aborrecido mas sem o demonstrar no discurso.  

O polícia titubeou por algum tempo, procurando por uma resposta que soltou segundos depois. Quase um minuto de gagueira.

- Não tenho aqui o codigo, mas o senhor devia saber. – Atirou com alguma rudeza discursiva Escurinho que se mantinha focado no seu "pente". Afinal tinha chegado o "sábado da boda" e todo o grão que se podesse angariar faria bom serviço ao "papo".
 

- Senhor polícia, confesso-lhe que não conheço a letra do artigo que citou pois não trabalho com essa matéria e nunca mo disseram, pois conduzo há já muitos anos e mesmo hoje parei diante de seus colegas mais de dez vezes, sem que me tivessem falado no tal artigo 56. Por ventura, o senhor pode exibi-lo para convencer o cidadão?
O  Senhor deve ter de cor ou exibi-lo em texto documental. Nao é o que diz a constituição? Quando se tiver de multar ou prender o cidadão tem de ser convenientemente esclarecido sobre as razões da sanção. Ou deixou de ser assim?! – Jogou Mona-a-Chico o que lhe parecia ser o último argumento para se livrar daquela isca.

O  Senhor é que deve ter de cor ou exibir em texto documental para convencer o cidadão. Nao é o que diz a constituição? Quando se tiver de multar ou prender o cidadão tem de ser convenientemente esclarecido sobre as razões da sanção. Ou deixou de ser assim?! – Tentou convencê-lo Mona a Chico.
Encostado à estrada (noutras circunstâncias seria à parede daquela antiga igreja em reuínas em Botomona), o homem saltou a linha da força dos argumentos racionais e passou para o lado da razão da força.

- Ou o Senhor assinas a notificação (que ainda não tinha passado) ou vou te prender por desacato à ordem. – Ameaçou Escurinho autoritário.

 
-
- Deste jeito, não assinarei a notificação que ameaça preencher e se me prender saiba já que quando o carcereiro abrir a porta para me soltar da cela, você estará entrando nela. - Disse o condutor, já com paciência aos retalhos, o que fez abrandar a postura ameaçadora do fiscal de trânsito.
- O Senhor é polícia ou militar? - Recuou o fiscalizador que aproveitou chamar um colega, um risco em cada ombro, para ir "explicar no senhor" o artigo 56 do codigo de estrada de Angola.

Quando o segundo homem de farda azul, mais polido, se apresentou, o automobilista tinha ao telefone um oficial general da corporação a quem estava a reportar a interpelaçao, a ameaça de multa e a ausência do citado artigo 56 que "proibe o transporte de sequer uma mala de roupa no banco traseiro de uma pick up de cabine dupla".
- Chefe, tenho mala no banco da trás da pick up e o sargento regulador diz-me que me vai multar por transgressão ao artigo 56 do código, chefe, já que ele não tem, pode dizer-me se tal colocação é verdadeira?

O telefone estava em viva voz. Ali mesmo, os homens que cuidam da segurança das pessoas e dos bens trocaram, trocaram cortesias e senhas parta que pudessem certificar-se de que não era um impostor na linha.

Sem mais palavras, o automobilista viu os seus documentos devolvidos pelo sargento de uma risca, o mais polido.
- Será mesmo que não se tem transportado nem um saquinho de compras no banco de trás? - Questionou o automobilista, em jeito de retirada, ao segundo homem, recebendo desse apenas um cordial aperto de mão e um "boa viagem, amigo automobilista".

Nota> Texto publicado no Semanário Angolense, edição de 26.09.2015

  

 

sábado, agosto 08, 2015

MONSTROS QUE AS QUEIMADAS POE A NÚ

O suprimento da saudade que os sufocava, havia já mês e meio, fê-los sorver aquele momento único em surdina. Era como sugar o tutano na mais profunda intimidade. Ele instalado nela (carrinha) e ela dando gozo ao longo de léguas que separavam o nordeste do centro-oeste para aonde se dirigiam.

- Lembras-te, Soba, quando viemos parecia não haver ferro retorcido ao longo da via. Vês que a paisagem hoje mudou? - Disse ela em ruídos apaixonados.

- Sim, Maria. Temos ainda muitas sobras das guerras. - Respondeu o companheiro, enquanto a afagava com mais uma mudança de força.

Mas, Soba, donde vieram então esses monstros todos, já sem cor nem forma, e que fazem recordar os tempos do tri-tri-tri-buummmm?!

- Estavam escondidos, Maria. Eu também pensava que os catadores de ferro já tivessem recolhido todas essas lembranças das guerras e levadas à siderurgia nacional. Pensava que já estivéssemos a usar arados fabricados com despojos e destroços das guerras. Ainda bem que as queimadas à beira da estrada estão a colocar tudo à mostra dos recolectores de ferro velho. É tempo de obra para os ferreiros. - Explicou o amo.

A travessia de um grupo de adolescentes com pás nos ombros fê-los interromper a prosa oral para reflectirem sobre as pás que sulcam terra em busca de incertezas escondidas no subsolo, numa altura em que a paz permite ter escolas à dimensão dos aglomerados, porém algumas chorando por alunos refractários.

- Esses assim vão à tonga ou à campanha sabatina de limpeza escolar? - Atirou Maria inocente.

- Acorda, filha. Estamos em Xamikelenge. Aqui e na Muxinda as pás, mesmo em tempo de paz, significam ainda a busca de kamanga. As escolas têm ainda as carteiras vazias à espera desses mancebos. - Explicou irónico o dono dela.

- Soba, voltou a interromper Maria, quando falávamos sobre as sucatas acastanhadas de ferrugem e já sem as chaparias que ajudariam a descortinar de que tipo de veículo se tratavam, falavas em sobras das guerras, no plural. Houve por cá muitas guerras? Gostaria que me explicasses tim-tim por tim-tim. - Solicitou Maria quase suplicante e cortado já, a meio, a encosta de Kabatukila, Xinje, onde, por ironia, um camião carregado de ferro velho repousava ad eternum no meio da rodovia, entregando-se também à interminável quantidade de ferro por recuperar país adentro, recortar, transportar, fundir e transformar. - É preciso, afinal de contas, dar vida à agricultura e à construção de infraestruturas, o que passa pela reactivação da indústria siderúrgica, cogitou, sem no entanto o pronunciar.

- Sim Maria. Usei mesmo, e propositadamente, o plural.

Houve a guerra dos movimentos contra o colono, durante 14 anos, em que muita técnica das tropas ocupacionistas foi aniquilada nas emboscadas. Depois foi a guerra civil que também destruiu a técnica militar automóvel e rodo-transportada das partes conflituantes ao longo de 28 anos. Temos ainda a guerra infinita entre a estradas e os veículos, entre os automobilistas e as vias, que parece ser a mais dura e lúgubre. - Explicou seu amo.

Maria aprovou o discurso, solicitando uma mudança de menos força e mais corrida ao que Soba prontamente compreendeu e anuiu.

Prosseguiram a viagem entre silêncios, diálogos e afagos carregados de recordações e afectos. Maria, no auge da força e jovialidade. Ele, Soba, no auge do poder, vigor a paciência em contornar as inúmeras armadilhas e os incautos camionistas que, vezes sem conta, colocavam o traile no eixo da via, submetendo em risco a vida daqueles com quem se cruzam nesta batalha da busca do pão comum para o estômago vazio.

- Esses assim pensam que a estrada é propriedade privada deles ou que os outros não têm vida? - Desatou Maria, que não poupou um estrondoso muxoxu que lhe invadiu a boca. - Vão mazé, seus sacanas de merda, e tenham juízo nas vossas cabeças de gafanhoto, ! - Concluiu resmungante Maria.

- É isso, Maria. Isso é pão de cada hora. É isso que alimenta os esqueletos metálicos na via. Alguns camionistas só se dão conta disso depois de entrar em prantos, envolvidos num sinistro, ou quando tripulando um veículo menor se depara com semelhante corneada. É essa a luta desigual que mais me preocupa. - Falou- lhe filosófico o amo antes de ser parado para uma fiscalização preventiva dos homens do apito laranja.

- Donde vem, senhor condutor? - Atirou o agente de farda verde e colete laranja.

- Do nordeste, senhor agente. – Respondeu o soba, já com a papelada da Maria e a sua em mãos.

Conferida a papelada, acto que se repetiu outras nove vezes ao longo do trajecto, o agente, caprichosamente aprumado com gravata e luvas, devolveu os documentos e fez o sinal de partida. Aliás, não faltaram as perguntas do costume: como vai a viagem e que notas de realce nos reporta, senhor automobilista­?

Não havendo acidentes ou incidentes graves ao longo de tudo quanto tinha percorrido, preferiu soltar um NADA CONSTA e seguir viagem até à cidade erguida sobre a encosta da montanha das cobras Ndala onde tomou a primeira refeição do dia que se acrescentaria ao meio litro de café que tomara ao longo das oito horas de estrada. Maria também reclamava pela segunda refeição, o que lhe foi servida sem hesitação. Havia ainda perto de duas centenas e meia de quilómetros pela frente. O sol despedia-se a caminho do grande Kalunga-Lwiji, ao ocidente. Sábado da batida e da Ngwenda na capital e arredores, na Catedral do amor católico, bem nas barbas do Kwanza que dá vida e dinheiro aos akwaxi, as devotas pediam dinheiro, maridos, felicidade e tristezas para as concorrentes. À espera de uns incautos desconhecedores das regras de trânsito ou das leis estariam outros akwaxi. É a lei da vida urbana e da selva. É a lei dos opostos. Maria que ouvira até aí os desabafos do seu amo voltou a questionar.

- Mas por que pedem algumas pessoas a morte de rivais, Soba­?

- É a lei dos opostos, filha. O que te faz bem pode não me fazer bem. O que pedes pode ser o oposto do meu desejo. Já vi duas rivais a rezarem para que a consorte desaparecesse do mapa. – Troçou o amo.

- Ai é­? Então leva-me à Muxima. Pretendo pedir que nessa estrada, da Capital aos Kwanzas, passes a andar somente com o António (nome de outra viatura), pois há muito que ando com a coluna sôfrega.

Entre curvas e lombas, sol poente, sombras e penumbra, seguiram seu caminho até à próxima paragem...

sábado, agosto 01, 2015

OS MANGONHEIROS DE SERVIÇO

Ouvi, em tempos, alguém a gabar-se do facto de ser um "mafioso" no trabalho.

- "Eu sou um mafioso e ninguém me aguenta". - Gabava-se.
Não que estivesse ligado a uma organização criminosa, uma máfia ou coisa parecida. Reportava-se ao facto de ser um funcionário descomprometido com o trabalho, violador do código de deontologia do Funcionário Público.

Dizia ele que faltava ao serviço sempre que quisesse, que inventava óbitos e doenças para não trabalhar e que conhecia, inclusive, uma rede de falsificadores de documentos que lhe passava as receitas médicas e os boletins de falecimento, com os quais justificava as inúmeras faltas (pois estava mais ausente do que ausente) que lhe eram marcadas. E gabava-se ainda o individuo que "o chefe é meu "panco" (cúmplice), pois fechava os olhos aos seus desacatos e desleixos para com a actividade profissional. Era um homem que conjugava, vezes sem conta, o verbo faltar.

- Eu falto sempre que quiser e ninguém me penaliza. - Gabava-se, ao mesmo tempo que infectava os demais colegas com o seu vírus da indisciplina.

Há ainda os useiros e vezeiros na conjugação da forma negativa do verbo fazer. Não faço. Embora sejam corpos presentes no local de prestação de serviço, esquivam-se sempre das tarefas. Se as fazem não com o esmero necessário e esperado. Estão apenas para assinar o livro de frequências (ponto) e esperar pelo ordenado. Têm sempre um parente ou um amigo enfermo por visitar em hora de trabalho. Nas reuniões nunca contribuem de forma a melhorar as ideias expostas pelos colegas mas estão de boca sempre pronta para lançar críticas ao trabalho realizado pelos outros. Aos seus líderes levam problemas mas nunca apresentam soluções. Estão sempre à mão quando é para transmitir energia negativa. São recolectores de infelicidade que transportam e distribuem pelos colegas. Em conversas sobre a apatia que se instala nas instituições omitem as experiências positivas doutros Departamentos, trazendo apenas os exemplos mal conseguidos, como se o anormal fosse a regra.

- Chefe, não é só aqui, ali também é assim. – Dizem, como se desta forma estivessem a contribuir para transformar a instituição e o país.

Uma minha ex-colega de formação gostava de enfeitar a boca com o termo "eu sou filha de fulano de tal" e por isso ninguém me penaliza. Também não assistia as aulas, mas no final do semestre ou do ano lectivo passava a vida a reclamar dos professores afirmando que os mestres tinham sido maus para com ela. Calculo que no trabalho ela continue a conjugar o verbo ser (fidalgo) e a reclamar dos responsáveis sempre que a avaliação do seu desempenho corresponda àquilo que não faz durante o ano. A minha ex-colega, fruto do facto de ser fidalga, também gostava de conjugar o verbo ter. – Eu tenho influências e, por isso, ainda que não estude, ninguém me pode reprovar. – Afirm,ava de boca cheia.

Hoje, estará igualmente a dizer que tem influências e, ainda que falte ou que não trabalhe, ninguém a pode penalizar ou responsabilizar pelo incumprimento dos seus deveres.

Certa vez, quando estávamos a estagiar numa empresa, veio à baila uma conversa sobre o comportamento no local de trabalho, com realce para o cumprimento dos deveres e a reclamação ou usufruto dos direitos.

A minha colega, cujo nome omito, dizia, de boca cheia, que procurava mais por um salário do que por um emprego. Um dos colegas que não deixava conversas azedas para o dia seguinte enfrentou-a nos seguintes termos:

- Jaja, perdeste o teu tempo na formação para ser uma lesma no serviço? Se for para fingires que trabalhas ou apenas para mostrares aos vizinhos que tens um emprego, monta uma barraca em frente à porta de casa e faz negócios. Sendo tu mesma a patroa, apenas as tuas necessidades financeiras te obrigarão ou não a te desempenhares com maior acuidade. Como te podes orgulhar em ficar oito horas no trabalho em vez de trabalhares oito horas? – Questionou o Dito, conhecido como "O Bombeiro Diligente" por seu pau pra toda obra, sempre motivado e sorridente, fazendo as coisas com perfeccionismo, precisao e celeridade.

Ainda bem que  o meu leitor se escusa em ser pregador de maus exemplos, pois sabe que em todas as situações, domésticas ou laborais, há sempre quem tenha menos do que nós e que vive feliz, apesar das dificuldades. O meu leitor, tenho certeza, é dos que espalham sorrisos por onde passa, planta alegria e colhe bons resultados profissionais.

Na sua instituição, é dos primeiros a entrar e dos últimos a sair, depois de um dia sempre produtivo e inovador, valendo-lhe, por isso, uma boa carreira e reputação. O meu leitor é daqueles que conjuga o verbo agir, servindo-se do equilíbrio nas suas posições, respeitando as pessoas e as normas instituídas. É dos que se colocou, à partida, uma pergunta a si mesmo e cuja resposta é fornecida pelas suas acções diárias:

- Como quero ser lembrado(a), no futuro, pelas pessoas com quem lido ou que passarem por cá e ouvirem falar sobre mim?

A resposta define a estrada que vai construindo no seu dia-a-dia.

Nota: text5o publicado no Semanário Angolense de 01.08.2015