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terça-feira, setembro 08, 2015

HOMENAGEM ÀS MULEMBAS DE LUANDA


Nzuzi nasceu em Alfândega, um pequeno vilarejo do norte de Angola. Chegado a Luanda, em meados dos anos noventa do século finado, ainda criança, viu o mundo da escola a fugir-se dele por não lhe terem dado a oportunidade de deslizar persistentemente o lápis sobre o papel até dar forma às figuras geométricas, às letras e aos números. Nzuzi passa hoje grande parte do seu tempo refugiado em sombras de mulembeiras ou mulembas, numa das ruas da zona urbana de Luanda, onde faz da lavagem de carros o seu ganha-pão.
Xavitu, outros dos jovens que frequentam as sombras das mulembas de Luanda, nasceu em Namacunde, no Cunene. Xavitu abandonou a sua terra natal forçado pela guerra. Os ovambu, embora tenham a vocação natural de pastores e gostem de fazer transumância do seu gado, não são muito dados a emigrar para terras distantes e desconhecidas, ainda mais, sem o gado, uma de suas principais ocupaçoes. Mas Xavitu, aconselhado por um parente do exército que pesquisara o "salve-se quem puder" na grande cidade, acabou aceitando a ideia de refugir-se em Luanda onde se dizia ser tudo possível. Meteu-se em cima dum camião de carga procedente da Damaralândia e aportou na cidade dos sonhos com dezasseis anos apenas. Dias depois, escolheu a rua que liga a antiga escola de oficiais do Gika à Maianga, abundante em mulembas, onde passou a viver das propinas que cobra aos automobilistas afoitos em encontrar um lugar para estacionar suas viaturas. Tal como Nzuzi, Xavitu faz-se também passar por dono de um parque público, lava carros, cobra dinheiro pelo uso do pedaço de estrada morta, rouba aos incautos, danifica viaturas de quem não pague o que não deve e faz das mulembas da Martal o seu refugio sempre que o grito do sol fale mais do que a sua resistência. As mulembas passaram também a seu restaurante, seu contentor de lixo e, pior ainda, também lugar para urinar e até mesmo defecar.
- Kota, aqui é só mesmo se desenrascar. Quando cheguei, era ainda um "camenino" e comecei mesmo a viver no elevador estragado dum prédio e a lavar os carros e carregar as coisas dos chefes. Quando tenho vontade de tirar água do joelho ou comida da barriga vou mesmo debaixo das mulembeiras. É mesmo já nosso hábito. Não temos outros lugares. Numas mulembas ficamos só para apanhar a sombra, noutras é que fazemos já o que o kota está a ver. - Narrou Xavitu, meio envergonhado.
Lembinha é zungueira e percorre a cidade de lés-a-lés. Na sua bacia, já quase sem cor, transporta "magoga" (sandes de frango frito), "paracuca" (jinguba ou amendoim açucarado), kisângwa (refrigerante caseiro) e outros "mata-fome" bastante solicitados por funcionários públicos e outros frequentadores da cidade, em negócios de rua ou trabalho formal. Apesar de a condição feminina não ajudar muito para a frequência das mulembas, vezes tantas Lembinha teve de imitar os colegas masculinos das ruas de Luanda para aliviar-se debaixo de uma árvore.
- A pessoa se amarra um pano e faz só já debaixo da árvore. Não temos sítios para fazer as "centinas" e quando você bate porta do quintal para pedir licença na casa de banho, ninguém te aceita. - Argumentou com uma ponta de vergonha e tristeza.
Lembinha que é de Tunda Sanji, Ngulungu Alto, tem a consciência do mal que provoca às mulembas e à sanidade urbana, pois reconhece que "não devia ser assim, porque a cidade cheira mal e muitas árvore acabam por secar", mas também se justifica sarcástica que "quando, na barriga ou na bexiga, a revolução chega não há como travá-la", informa a vendedeira.
Na Petrangol, as mulembas que ladeavam a estrada que nos leva a Cacuaco, e Caxito e que desenhavam um "túnel verde" não resistiram à força do machado construtor, que propicionou o alargamento da rodovia, mas ainda resta a Mulemba Waxa Ngola. Apesar de local histórico, de veneração e culto ao soberano Ngola Kilwanji Kya Samba a quem se deve o nome do nosso país, a árvore vai recebendo urina e vários detritos produzidos pelo homem.
 Nga Ximinha, uma senhora que vende bombó assado com jinguba torrada, refugia-se sobre a sombra da árvore secular, não se coibindo de oferecer-lhe, vezes tantas, alguns litros de urina e adubá-la com os restos do seu comércio de rua. Ximinha é também testemunha de outras cenas que se desenvolvem debaixo da mulemba mais famosa da Petrangol.
- Aqui quando é noite, os moços vêm cá namorar e se encostam mesmo na árvore. Já encontramos aqui latex usado na pouca vergonha desses meninos do bairro. Outros, quando o xixi lhes aperta, não se escondem mais. Até homens de fato e gravata é mesmo aqui que descarregam o seu mijo de kimbombo e kapuka que cheira como cheira. - Desabafa Ximinha, entre um misto de culpa pelo que também faz contra a árvore e algum desgosto pela imundície à volta.
Quando se lhe pergunta por que faz ela parte dos que jogam lixo na mulemba, Ximinha coça a cabeça e balbucia:
- É mesmo falta de educação e respeito pelas coisas sagradas. Uma árvore dessas devia ser melhor tratada. - Reconhece a senhora, nos seus aparentes quarenta e picos anos de idade.
Assim segue a vida das mulembas e daqueles que na cidade ganham a vida debaixo das árvores, não sendo poupada nenhuma espécie que se mostre à rua: acácias, coqueiros, tamarineiros, espinheiras, macieiras da India, imbondeiros, etc.
Resilientes, mesmo maltratadas, apresentando-se feridas com os troncos rasgados ou amputados, as nossas mulembas estão sempre dispostas a transformar hidrogênio em oxigênio puro e incontornável à respiração humana. Mesmo sendo insistentemente regadas a mijo humano e adubadas com dejectos, lá estão elas, enfeitando calçadas, ladeando as ruas e avenidas da nossa capital, lançando ainda o seu perfume que só a barbaridade de quem se esperava pensante elimina com o fedor de suas descargas biológicas.
As nossas mulembas de Luanda são símbolos de resistência contra o mal, sem falecer. Continuam hirtas, desempenhando seu papel social e vital.
Plantemos mulembas e demais árvores nas nossas ruas, largos e quintais, a fim de ganharmos oxigénio reciclado e uma vida mais verde e alegre. Reguemos as árvores apenas com água natural e adubemo-las com fertilizantes naturais e químicos recomendados por especialistas. Respeitemos os locais de culto secular e de memória colectiva, como a Mulemba Waxa Ngola e outros locais como salvaguarda da nossa herança histórica e cultural. E gritemos todos: vivam as nossas mulembas!

Texto publicado no Semanário Angolense a 15 de Agosto
 

 
 

1 comentário:

Unknown disse...

Olá, gostei muito do blog!
Também tenho um onde coloco algumas poesias minhas.
Poderia visitar?
http://wordsbyalonelyguy.blogspot.com.br