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domingo, janeiro 17, 2016

(RE)CONHECENDO ANGOLA

Crónica 01
- Afilhado, se um dia fores à Huila, não te esqueças de chegar às cascatas da Huila. Sou comandante da esquadra comunal. A cascata é, para além do Cristo Rei, Fendas da Tundavala, Serra da Leba e Serra da Xela (Chela), um dos melhores locais para visitar e arregalar os olhos. - Disse-me o padrinho, numa conversa havida há já dois meses.
Chegadas as férias, preparei a "Maria" (nome da carrinha) e fiz-me à estrada: Lwanda-Sumbe-Kanjala-Lopito-Mbengela-Xongoloy-Kilenges-Luvango (Morro da Xela, Cristo Rei, Humpata, Serra da Leba, Tundavala)Xibya, Mercado das Mangueiras (Namibe), Luvango. Confira as estórias

Perto de mil quilómetros da capital de Angola à capital da Huila, a caminho do alto e montanhoso Sul do país. Entre troços recomendáveis e outros que quase nos cortam a respiração, ante a presença brusca de buracos assassinos, desfiz-me de Lwanda-cidade até à ponte erguida sobre o caudaloso e manso Kwanza, a afogar-se no largo Atlântico. É a cobrança de portagem que me desperta a atenção.

- Tomara que de trezentos em trezentos quilómetros houvesse essa forma de levar dinheiro ao cofre do Estado. Andámos a reclamar que as estradas estão más, quando pagamos pouco ou quase nada para as manter. - Atirei ao meu canino amigo e, mais uma vez, companheiro de viagem. Este concordou e a viagem ganhou motivo de conversa: as portagens necessárias e os impostos devidos ao Estado.

- Que tal também uma cobrança de portagem na ponte sobre o Kwanza, junto à localidade de Kabala? É recente, imponente e, tarde ou cedo, carecerá de manutenção. - Atirou Martins, em jeito de provocação, sem se dar conta que os Kz 210.00 pagos na portagem não tinham sido facturados. O Estado fora aldrabado pelo funcionário e nós, distraídos, limitamo-nos a avançar sem cobrar a nota de facturaço.

- No regresso, temos de pedir a factura e se o homem for o mesmo, terá de nos passar o documento em falta. É preciso que alguém se lembre disso. A ponte tem de fazer o seu pé-de-meia nesses tempos de verdinhas raras. – Complementei.

Viagem turística é para ver tudo à volta e à beira da estrada. Mas quando a rodovia nos convida para testarmos a potência do motor e a nossa aptidão, somente os sinais de trânsito nos impedem de baixar em demasia o acelerador: visibilidade, condições da via, estado técnico do meio e atenção redobrada são condimentos para uma condução defensiva. Assim aprendi num curso em Catoca.

Não tardou chegar ao Longa, Porto Amboim (onde o sol nos convidava para uma praia que ficou adiada para uma próxima digressão), rio Keve (onde o bagre fumado, à mostra na kitanda ribeirinha, faz verter água na boca faminta de quem deixou Lwanda sem tomar o mata-bicho). Daqui ao Sumbe foram dois assobios.

Calmo, mas sempre perigoso, o monte do Xingo (pescoço? De quem seria?) apresentava-se valentão até para os mais destemidos do volante e acelerador. Mudança intermédia, entre força e velocidade, com o travão sempre a meio. Ao entrar para a antiga cidade de Novo Redondo, a Maria apresentava o depósito a meio e teve de ser alimentada.

Já a sair, surgem casas sobrepostas na montanha que atende pelo nome do Médico-Guerrilheiro do Glorioso M. Uma fenda se presta a engoli-las a qualquer hora desses dias pluviosos. As casas erguidas em degraus sulcados sobre o monte argiloso apresentavam um semblante tristonho e medonho. O motoqueiro abordado não hesita em apresentar-nos o bairro.

- Aqui é no Américo Boa Vida. – Disse empolgado.

Olhei para o Martins que aproveitou a paragem para se aliviar da ureia e joguei rasteiro:

- O camarada Ngola Kimbanda merecia um chará mais organizado. Aqui não vislumbro boa vida. Olha para aquela casa abandonada, com a lateral desabada e sem acesso?

Colhemos as imagens possíveis e cavamos. Uma fomezita se fazia anunciar. Teríamos de resistir até Kanjala onde "as bombas e dinamites que despedaçaram a ponte sobre o rio que  dá nome à localidade não meteram medo ao povo unido" que ali fixou residência e sempre fez o seu negócio agroalimentar. Deslizamos sobre a nova travessia, também ela construída à base de ferro e betão, mostrando aos amigos da pólvora que o país se faz com trabalho.

- Kanjala é fome pequena. - Explicou Miqui, a jovem que disse ter nascido e crescido na aldeia, mas num tempo já de poucas refregas. Sobre os autores da barbárie contra as pessoas, os edifícios e a ponte, Miqui, aparentemente bem avisada e disposta apenas a servir o seu pirão que mata a fome, preferiu não comentar.

- Ó mano, nesses tempos os pais já não andam mais a falar sobre essas coisas. Quando nasci a ponte já estava na água e nunca me disseram quem foi que a partiu. – Esquivou-se ela da provocação, destapando as panelas que reluziam ao sol. Mas é já ao nos despedirmos que Miqui solta um detalhe: estão a ver aquela "kamunda, katito, tito" (montículo pequenino pequenino), é ali que se escondiam.

- Mas, que fome tinham os homens da pólvora que em vez de procurarem por comida a descarregaram sobre a ponte? – Indagou o Martins, cuja resposta ainda aguarda.

O peso do pirão com kalulú, que não tinha peixe seco, fez pressão sobre o pedal acelerador e não tardou chegarmos ao Lopito que me surpreendeu com a estátua que representa um camionista que abraça numa mão o volante e noutra a kalashenikov. O jardim que enfeita a rotunda está mínimamente cuidado, tirando os zungueiros e as crianças que jogavam despreocupadas a sua garrafinha por cima da relva. Consultada a placa sobre o monumento, diz tratar-se de uma “homenagem aos motoristas e ajudantes que de 1975 a 2002 ajudaram o povo e o poder instituído a levar mantimentos a todos os cantos do país”. Fiz-me à câmara e, por pouco pediria o livro da cidade para deixar o meu assentimento: "Homenagem merecida". Mas livro não havia nem tempo. Mbengela (Benguela) chamáva-nos apressada pois havia encontro “cirúrgico” combinado com o primo Casemiro, cuja casa devia conhecer. E o encontro foi no Hospital Provincial que registava um dia de pouca agitação.

Sol ardente, sede a cobrar água para os lábios ressequidos. Bem próximo do Hospital, a Morena cobiçava-nos desejosa para farfalharmos as suas areias brancas e águas límpidas. Resistimos: “Ficas na agenda, ó Praia Morena”.

Não vi o vermelho das acácias, se calhar por não estarem na rodovia que me conduziu ao Xongoloi (Chongoroi). Antes, no primeiro desvio para o Wuambu (Huambo), mulheres de pastores de bovídeos exibem o “mahini”. Aqui tratam-no apenas por leite azedo e não exactamente mahini como no sul. Cardealmente, estávamos ainda no oeste e não exactamente no sul como os nortenhos de pouca instrução catalogam os que nasceram abaixo do Kwanza. Não tardou surgir a vila que nos recebeu debaixo de chuva grossa.

 - Atenção, compadre, à ponte! Tem uma faixa vedada à circulação. Que terá havido? – A pergunta do Martins ficou perdida no roncar da Maria que pelejava contra a distância enquanto eu tinha como adversários os intrusos assassinos e o asfalto molhado.

Com o sol a namorar o mar, um controlo policial desperta a nossa atenção. À meia-distância estava uma ponte metálica prestes a ruir. Um trilho lateral indicava-nos que uma outra fora levada pela fúria da água. Levantando o rosto fui agraciado com a expressão, “Seja benvindo à província da Huila”. Estávamos a adentrar o município de Kilenges (Quilengues), cuja vila se apresenta bem cuidada e asseada. A administração municipal tem no entorno um jardim com representação de espécies da nossa fauna. Antes, um parque infantil atende pelo nome de Jacaré. O templo católico, a caminho do duo centenário, também se mostra alegre e decorado. Fazer fotos se mostrou irresistível.

- Sejam bem-vindos ao nosso município e desfrutem das belezas da Huila. – Gritou-se do outro lado da estrada, ao que fomos agradecer e perguntar se se objectava a colecta de imagens.

- Turismo sem fotos é como casamento sem filhos. – Disse irónico o mano de Kilenges, sempre com um sorriso nos lábios.

Entre Kilenges e Luvangu (Lubango), está Hoke (Hoque), comuna que eterniza um valente comandante das forças armadas angolanas, tombado em missão patriótica. Simione Mukune é o nome do bairro que fica depois do ponteco. O local, contam os moradores, tem dado, em tempo chuvoso, dores de cabeça aos automobilistas e governantes.

- Por cá passam muitas viaturas que vão ao Kunene (Cunene), Namíbia, Moçâmedes e outros destinos, procedentes do norte (Luanda, Benguela, Huambo, etc.). – Contou Zito, um jovem que se apressava em pedir boleia para Luvangu.

Debaixo de um céu já sem sol, ligo o rádio e a música nos convidava: “Vem, vem, vem| Vem conhecer Luvangu| Luvangu te espera”... A cidade era um clarão abraçado pela estátua Real implantada sobre o alto da Cela (Chela).

- Chegamos, compadre. Estás a ver aquele cerco montanhoso? É mesmo ali. Já lá estive por duas vezes em missões de serviço. – Atirei ao Martins que não conseguiu disfarsar a sua alegria.

- Finalmente, Luvango!

O medidor de distância apontava: mais de novecentos quilómetros percorridos entre Luanda e a cidade erguida sobre o sopé do monte da Cela (Chela).  

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