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segunda-feira, setembro 26, 2016

A ORAÇÃO DO KAPITIA


A amizade que carregam, há mais de meio século, dá-lhe a ousadia para falarem de tudo e sobre tudo. Entre eles, nada é segredo. Apenas há segredos que desvendam só quando a fila ande. Aí sim. Abrem um espaço nos epitáfios e levam ao conhecimento dos parentes mais chegados as extravagâncias inauditas do de cujus.

Chegados da Kibala, Kitembo e os amigos Kanhanga, Kilole e Kapitia notaram a ausência de Kandungu. O homem tinha o telefone desligado, não mandava os habituais recados aos manos da sua geração e igualhagem, nem pedia dinheiro para a cura de reumatismo que ardilosamente desviava para as "baixinhas espumosas", como gostava de tratar as cervejas de garrafa curta.

- Compadres, o gajo deve ter ido para a pior ou a caminho disso. Depois do culto, é melhor irmos espreitar, se ainda encontramos o corpo quente. - Kanhanga aos coetâneos que depressa concordaram.

Juntaram moedas, as que haviam sobrado de um domingo de muitos balaios: fundo de construção, acção de graças, dízimo do Senhor (roubará o homem a seu Deus? Questionara o pastor para melhor penetrar-lhe o cérebro e a algibeira), oferta dominical, etc. Tinha sido uma fina peneira, mas, mais-velho é já mais velho, tem sempre reserva estratégica. E foi com o sacudir dos kafokolos, onde normalmente fica enfiada a reserva estratégica, que fizeram a vaquinha com que se meteram a estrada, ao encontro de Kandungu.

Encontraram-no vivo, mas degradado. Isso mesmo degradado e em estado lastimável. Os saltos, provocados pelos buracos na via que separa a capital da sede de Kibala, haviam debilitado a sua coluna de sustentação. Os antibióticos e analgésicos para afugentar as artrites foram substituídos pelas "pequenas espumantes". Encontraram um amigo vivo mas transfigurado. Mais morto do que vivo.

Primeiro entrou Kitembu, amigo e tio, embora dois anos mais novo do que Kandungu. Seguiram-se-lhe Kanhanga e Kilole. Kapitia chegaria meio atrasado, pois fora ver a filha nas cercanias.

- Boa tarde sô Kandungu. Esta hora já estás calibrado? - Saudou, gozão, Kitembu.

- Não brinques assim. Se me encontraram com vida é já sorte. Quanto à bebida com que sempre te embirras, hoje só bebi mesmo uma. Estou mesmo a morrer e nem sei porquê que Deus não me leva já. - Respondeu Kandungu, resmungão e com a voz trémula, como se lhe faltassem apenas instantes para transitar para outra dimensão da vida.

- Mas ó Kandungu, é mesmo morrer que queres, quando pessoas com noventa fogem da morte como satanás foge da cruz? - Indagou Kilole?

- Sim, mano Kilo. Aqui já não está a dar certo. Sofrimento é muito. Morrer é descansar.

Os amigos, algo co condoídos, algo chateados, com o indivíduo que degradou o corpo por livre vontade, decidiram retirar-se e voltar no dia seguinte. Eram todos reformados e Kitembu tinha um bom jeep em que se faziam transportar, quando não fosse na carrinha de dupla cabina que Kanhanga acabara de receber de oferta do filho.

- Vamos. Quando voltarmos trazemos outras ideias e esperamos não te encontrar mais nesse leito e nessa desgraça. - Disse Kitembu a despedir-se e puxando pelos amigos.

Kapitia, que acabara de chegar, tentou ainda convencer Kandungu para se livrar da ideia de se eutanasiar.

- Mas, ó mano Kandungu, ainda a semana passada que choramos o irmão Domingos João, até as lágrimas nos olhos ainda não se secaram, você quer já nos deixar?

- Sim, Kapitia, é melhor eu partir. Se vocês acham que estou a brincar, amanhã mesmo não vão mais me encontrar.- Disse Kandungu com as últimas forças que lhe restavam.

Kapitia, entre sarcasmo e compaixão, decidiu solicitar uma oração, mesmo Kandungu não sendo mais membro da igreja, ao que todos concordaram, até o inferno que se achava sem forças para se pôr em pé.

- Oremos: " Pai nosso, nosso Senhor, Deus que dá a vida e que a retira quando quer, estamos aqui perante nosso irmão que jazz nesse leito, mais pra lá do que cá. A vida que o irmão Kandungu leva é de muito sofrimento e miséria, pai. Já que ele mesmo está a pedir, por que é que o pai não manda essa noite seu anjo busca-lo? Ao menos ele descansa perto ou longe do Senhor, em função das suas obras no mundo. Que assim seja. Ámen!

- Ámen! - Confirmaram os amigos.

Kapitia ainda não tinha terminado a oração é já Kandungu se sacudia de pé, entre os amigos. Afinal, não era a morte que precisava.

segunda-feira, setembro 19, 2016

O MUNDANO E O "MONDANO"

Conversavam cinco idosos da Kibala, todos septuagenários.
Kitembu e Kanhanga frequentam a igreja desde pequenos. Conheceram-se na Escola Bíblica de Férias, o primeiro levado pelo irmão Domingos João e o segundo por Beto Pequenino. Os tutores eram também amigos desde garotos.
 
Em termos de frequência da antiga Missão Evangélica Americana, hoje Igreja Metodista Unida, Kitembu nasceu mesmo na igreja, pois, quando ele veio ao mundo, seu pai já ocupava cargos na Metodista. Kanhanga começou mais tarde, aos sete anos. Iniciou-se na "Cheia", aonde fora levado por um primo, ainda no Kwanza-Sul. Chegado a Luanda, foi levado pelo tio que era da "Protestante" como também era conhecida a confissão cristã trazida pelo americano Willian Taylor.
 
Kapitia e Kilole, outros dois amigos, converteram-se ao cristianismo já jovens e foram levados pelos primeiros de quem são amigos desde tenra idade.
Kandungu é o único entre os cinco que, ao contrário dos quatro contemporâneos, aos domingos, troca a bíblia e o hinário pelo copo de cerveja.

Cruzaram num óbito, na Kibala, terra de origem comum. Uns nasceram em Luanda mas são de filhos Kwanza-sulinos. Outros foram a Luanda em busca de estudos e profissões e acabaram por lá ficar até aos seus dias de cabelo branco.

Kitembu tinha perdido o irmãos mais velho e os amigos foram levar consolo. Depois do funeral, e para enfrentar um tempo friorento, os cinco amigos falavam sobre as coisas boas do mundo, aquelas que Kandungu ainda persegue cegamente, e as coisas excelentes dos Céus ou a vida ultra-tumba, que Kitembu, Kanhanga, Kilole e Kapitia procuram atingir com a sua entrega abnegada à causa de Cristo.
- Ó Kandungu, você sabe qual é a duração da vida do homem na terra? - Indagou Kitembu.
Kandungu, meio surpreendido, procurava buscar uma resposta que fosse de encontro à sua idade e experiência. Como um carro sem arranque, começou a resposta pelos soluços, enquanto coçava a barba, toda ela algodoada.
- Já viu o quê que os copos faz no homem? O "ngajo" parece já esqueceu tudo. Setenta anos, que vem na Bíblia, já não sabes? - Atirou Kilole, provocante.
- Sim. São setenta anos para que o homem se sinta com força e saúde. Fora disso, a pessoa volta a ser como criança. Mesmo uma vala de metro e meio, que a gente pulava sem recuar atrás para apanhar balanço, você já não pula mais. - Complementou Kanhanga.
- É verdade compadres. - Kitembu voltou à conversa. - E parece que aqui o mano Kandungu, que é também meu sobrinho, apesar da idade dele ser mais do que a minha, já não consegue pular nem meio metro. No sangue dele só lhe corre já espuma de cerveja!
- Ei, ó Kitembu, atenção ao respeito. Tio é tio, mas quem nasceu primeiro também merece respeito. - Reclamou Kandungu, em jeito de brincadeira. Na verdade, os cinco galhofavam.
Kapitia que até aí se mantivera apenas a seguir a conversa, ora abanando a cabeça para a frente, em jeito de aprovação do que se ia dizendo, ora fazendo-os companhia nas rizadas de mostrar o espaço deixado pelo último molar, colocou um subtema novo.
- Vocês sabem qual é a diferença entre o Kandungu e nós?
- Ele bebe, nós não. No domingo, ele abraça a caneca e nós a Bíblia e o Hinário. - Responderam quase em uníssono Kitembu, Kanhanga e Kilole. Só Kandungu se manteve na defensiva.
- Vocês "num" disse tudo. - Corrigiu Kapitia, 77 anos no lombo. - Nós todos que vai "no ingreja" é mundano. Mas ele não. Ele é "mondano".
Uma estupefação se apossou dos quatro, Kandungu incluído, que pretendiam saber o significado da nova palavra enunciada pelo amigo que era o mais velho do grupo.
- Ó mano Kapitia, você pode explicar "no" Kandungu o significado de mundano e "mondano"? Eu também só sei que ele é mundano porque deixou de ir "na" igreja. Tanto que lhe ando a dar conselhos, mas não me está a dar ouvidos. - Disse Kitembu solícito.
- Pois, então, oiçam bem: todos que vivem no mundo, se vai "na" igreja ou não, são mundanos. Pessoa como o irmão Kandungu, que "num" vai "na" igreja, que pecado dele se amontoa, é "mondano". O termo "mondano" vem de "mondanha" (montanha). Pecado dele é como uma "mondanha" porque ele não vai à igreja diminuir. - Kapitia terminou o seu sermão com assobios e rajadas estridentes de palmas doadas pelos amigos.
Assim fizeram o seu segundo serrão, em homenagem a Domingos João António, até que o último galo se aposentou de cantar.

segunda-feira, setembro 05, 2016

O RECÚO DA MONOCULTURA NO AMBOIM

 
Reza a nossa História económica de Angola que em 1973 o nosso território era o quarto maior produtor mundial de café. Das centenas de milhares de toneladas que eram exportadas, despontava o robusta do Amboim. Tanta importância teve o café na balança económica e no desenvolvimento da região que uma linha férrea foi construída, ligando o Amboim (cuja cidade capital é Gabela) ao seu Porto, ex-Benguela Velha.

Imperava a teoria económica do " retirar o máximo aproveitamento das vantagens competitivas do mercado", tendo o regime colonial imposto as monoculturas a muitas áreas e povos. Argumentava-se, que com a renda procedente da monocultura, nesse caso o café, comprar-se-ia o que mais se precisasse ou faltasse.

Visitei as duas cidades (Porto Amboim e Gabela), no afã de explorar o turismo rural e o regalo que a Binga, Kwanza-Sul, e suas cachoeiras nos oferecem. Duas notas importa partilhar: se na Binga a falta de instalações hoteleiras no espaço adjacente à maravilha natural, eleita uma das sete melhores do país, "corre" com os turistas idos de longe, limitando-se a umas selfies, já no trajecto que nos leva à Gabela e CADA, é a progressão do bananal que desponta, num território montanhoso em que o café se apresentava com o verde das ramagens, o vermelho do bago maduro, bem como o sabor único e adocicado do fruto seco e torrado.

Os montes, cobertos de árvores altas e frondosas que davam sombra aos arbustos de café, são hoje invadidos pelo bananal que vai pleiteando e progredindo a desfavor da chávena quente no restaurante e do dólar fresco no BNA.

Por que será? Interroguei-me ao longo da viagem, sem ter de necessitar de um agrónomo ou economista para a resposta.

De aldeia em aldeia, a banana está sempre exposta à venda. Dá sustento imediato. Se não dá dinheiro, mata a fome. O café não. As plantas precisam de ser podadas, as picadas e acessos requerem limpeza todos os anos. O bago maduro não alimenta o estómago vazio. Precisa de ser colhido, depositado no terreiro para a seca que leva semanas. Depois de seco, tem de ser ensacado, transportado para o armazém, descascado, reensacado, vendido a poucos Kwanzas por cada quilo e exportado para proporcionar dólares ao país e enfeitar a chávena num restaurante além-mar.

Deve ser por isso que vamos tendo pouco café para exportar!

Nota: Texto publicado pelo semanário Nova Gazeta de 08.09.2016.