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sábado, outubro 01, 2016

O GAJO DO PASTOR

Transcorria apressado o ano de 1984. A classe Kwanza-Sul, do cargo de Kalemba, havia se emancipado e se constituído em novo templo. Para os metodistas unidos, igreja protestante de origem americana, cargo equivale à paróquia e classe à capela onde os fiéis mais próximos se reúnem durante a semana, sendo o cargo (igreja) o espaço que acolhe os cultos (missas) dominicais e outros eventos aglutinadores de todas as dependências.
Depois de frequentar um curso teológico, no instituto Emanuel Unido, no Ndondi, Domingos João António transitara de mestre do coro da Kalemba a pastor do novo cargo, baptizado com o nome do profeta que conduziu os israelitas das masmorras faraónicas à terra santa.
Kitembu, o irmão mais novo, o sobrinho Kandungu e os amigos destes Kanhanga, Kapitia, Kilole, as meninas Celeste, ST, Tt, as irmãs Domingas e Henriqueta e outros faziam o núcleo juvenil da Igreja Moisés, encantando, com suas vozes, a vizinhança do Nzamba-1 com banhos de melodias. O conflito armado que o país enfrentava, as rusgas para o serviço militar obrigatório, as filas nas lojas do povo, as latas e pedras que acolhiam os "pioneiros" nas escolas, tudo isso se tornava menor, perante os ricos sermões do pastor Milocas, o Domingos João. Humor, realismo e esperança num devir melhor, se constituíam no centro das suas pregações muito concorridas. Vezes tantas a rua teve de dar espaço aos ouvintes da palavra santa que se ensardinham num espaço a reclamar, mês a mês por mais alargamento.
Kandungu, meio-mundano e meio-mondano, já naqueles anos, frequentava dominicalmente a igreja, talvez porque, sem com quem prosear, os domingos no bairro se constituíssem em momentos ocos. Sem companhia, seguia ao encontro dos amigos. Alinhava no Coro e cantava ardentemente um tenor afinado, sendo possuidor de um "Ámen" ímpar.
Num dia de Setembro, que a memória não registou, o pastor Domingos João, que não vai Kandungu há mês e meio, decidiu visita-lo antes do culto e juntos seguirem à igreja, aproveitando a caminhada para conversas e conselhos se disso precisasse. Afinal, apesar da confissão havia algo de sanguíneo a liga-los. Kandungu estava esposado com a Tt que era a soprano principal do coro central.
As ausências do Kandungu aos cultos tinham sido notórias e sempre que o pastor inquirisse a sobrinha/nora sobre a ausência do marido, a resposta era sempre "dormiu de serviço, tio".
Pelos becos do Cazenga, Rangel, Sambizanga e até mesmo no Bairro Popular e Prenda onde tinham amigos e familiares, não deixavam de se avolumar, porém, ruídos sobre algumas doses, algo extravagantes, de uvas fermentadas ou cevada processada com lúpulo.
Manhã cedo, sete e meia no Sete-e-meio. Pum, pum, pum. Tt amarra apressada o pano acima do busto e vai abrir a porta.
- Bom dia sobrinha Tt.
- Bom dia sô pastor.
- Aqui em casa também podes me chamar de tio. Não fui eu que fui te fazer pedido? Só na igreja é que pastor não tem primos e sobrinhos. Aqui é em casa e podes me contar o que teu marido anda fazer. A propósito, não vejo o Kandungu há dois meses e você na igreja não me conta quando pergunto. Ele está aí?
- Não tio Domingos João. Ele dormiu de serviço. Esse mês todo, está a fazer fim de semana porque colega com quem divide o turno está com um problema.
Entre convidar o tio pastor a entrar e tomar a cadeira de fitas e atende-lo à porta, Tt preferiu a indelicadeza, pois o estado etílico de Kandungu podia rapidamente desmascarar a mentira.
- O tio quer deixar algum recado? - Perguntou Tt, procurando despacha-lo.
Sim, irmã Tt. Quando ele chegar diz que o tio e o pastor dele que sou eu Domingos João está preocupado e quer que me procure em casa ou compareça à igreja no domingo que vem.
O pastor marcou uns passos em retirada mas parou para refazer a agenda. Oito menos um quarto era muito tempo de sobra para o culto que começava apenas às nove horas. Era preciso visitar outras ovelhas perdidas ou em vias disso. Era preciso evangelizar. Tt aproveitou a saída do pastor para acender o ferro a carvão e engomar a roupa e a beca com que se apresentaria a igreja.
Do quarto, (in)ciente de que o silêncio indiciava a retirada do pastor, Kandungu gritou:
- Teté! O gajo do pastor já foi?
E não foi a mulher que o respondeu. O pastor ainda não tinha feito a primeira curva do beco. Estava fora do pequeno quintal de aduelas e chapas toscas de zinco, a centímetros da janela do quarto que dava para o beco.
- Não, irmão Kandungu. O gajo do pastor ainda está aqui.
Para voltar à igreja, Kandungu levou mais três meses e toda a família do pastor teve de ir passar um sábado com ele.

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