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sexta-feira, dezembro 22, 2017

CORRIDA DE JANTE

Enquanto a idade de montar numa Belita ou Caloy 28 não chegava, o sonho circunscrevia-se a ver a "bina" decomposta e herdar uma ou senão mesmo as duas jantes. A jante personificava tudo: a bicicleta, a motorizada e até mesmo o tractor ou o carro. Por isso, enquanto corríamos atrás da jante, verbalizávamos um som onomatopeico de equipamento a motor movido a combustível. E correr atrás de jante, com um caniço como volante que empurrava o meio, tanto podia dar alegria nos concursos realizados com os amigos da aldeia, como podia custar dolorosas reprimendas das mães de mãos leves às queixas da vizinhança.
- Andar a correr pela estrada, com tantos carros, é perigoso. Você já não ouve por quê, kokolo dyami?! - Repreendiam.
Seguia-se o puxão de orelhas e o choro só para pedir clemência e sair a correr na próxima oportunidade.
- Mana Maria, esse miúdo parece é borracha ou carne do mataku. Você fala não ouve. Pessoa com raiva bate e o menino nem chora. Assim "lhe" faço ainda "comué"? Mana me dá ainda ideia.
- Joaninha, "lhe" deixa só assim. Um dia vais "lhe" matar por engano, na hora da porrada. Se não estás a "lhe" conseguir, "lhe" leva no pai dele.
- É, mana. Vou mesmo seguir teu conselho. Kimbito lhe "desconsegui". Vai só me trazer azar.
Enquanto as mamãs punham a conversa em dia, a diversão da garotada era a corrida de jantes ou pneus e ir à caça de kiberra, uns gafanhotos verdes e compridos, que eram amarrados a linhas finas e longas, deleitando a criançada com os seus voos rápidos e curtos.
A jante, porém, tanto fazia sofrer como servia de mimo "na hora de filho querido", sobretudo naqueles dias em que se devia levar um recado urgente à tia próxima ou mesmo ir ao mercado comprar o emergencial "género alimentício" em falta.
- Kimbito, meu filho de homem, vem cá kasule!
- Mamã!
- Vem. Vai "na" tia fulana, "lhe" fala mamã vai trançar o cabelo às cinco e meia da tarde. Vai, filho corre e não demora. Leva a jante.
- Mamã "num mi" bateu há pouco por causa da jante?
- Filho vai só. Quando a mamã te bate é para cresceres!
Será? Mas íamos empolgados. Correr autorizado atrás da jante sabia à dádiva.
Grande esperteza das mães daquele tempo. Para realizar tarefas urgentes davam a jante. Para brincar com os amigos era perigoso!
Mas lá estávamos nós. Uns com as suas jantes e outros com os pneus recuperados de recauchutagens longínquas.
Sempre correndo até que a puberdade rendeu os tempos de undenge. Para novas corridas, surgiram as ilumba.
- Moça, quero falar contigo uma coisa muito séria. Vou procurar-te às vinte e trinta, na hora em que o teu pai assiste ao telejornal. Será assim: tipo estou a passar, vou riscar no vosso portão e tu sais. Combinado?
- Sim, Manelito.
Na hora acordada, Manelito, caderno de improviso na mão. Se aparecer o pai ou a mãe da Kavunji apresenta o caderno.
- Boa note, Tio Martins. desculpe, pedi o caderno para copiar a matéria de Biologia e vim já devolver.
Quando a Kavunji sai sem ser vista, o truque é uma perna no beco e outra perna no quintal. Para Manelito os quedes sempre bem atacados e pernas afinadas para a corrida e contornar as curvas do beco escuro.
- Manelito fala rápido, assim mesmo, a minha mãe já está a me procurar e pode sair.
Manelito sem jeito, bate uma mão sobre a outra cerrada. Puxa conversa de encher saco: aula de História, Química e Física. Nunca de Biologia e Anatomia que é seu engodo. E o tempo passa. Mais um dia sem a Kavunji que fica apenas para o sonho no escuro do quarto sem lâmpada ou com lâmpada sem energia. E sonha jurando amor a Kavunji.
Chega a juventude. Árdua e responsável com outras pressas. Com ela a vida Kwemba... Melhor foi o tempo da jante!

Texto publicado no Jornal Cultura, Dezembro 2017 e pelo Jornal de Angola de 17.10.2021.

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