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sexta-feira, dezembro 29, 2017

PÁGINAS RASGADAS DA ESTÓRIA

- É minha, é minha..!
A disputa  pela "Mina" parecia animada por crianças ainda lactentes. Aos ouvidos de gente sensata não passaria de briga por uma bola ou uma boneca. Mas era mesmo gente de barba rija na jogada e corpos ninfáticos em disputa.
- Aquela é minha. Eu já a acompanho desde os ensaios e investi bastante para que tivesse esse formato!
A noite levava horas. Quase madrugada. A gala aprazada para as 21 horas estava atrasada por conta do governante máximo que tivera uns encontros fora da agenda. Todavia, nem o atraso diminuíam o frenesim lá dentro. As meninas, todas "trabalhadas a preceito" afugentavam o fantasma da "inexistência de matéria-prima local e natural com atributos para ganhar os concursos nacionais de beleza feminina". Esse era o argumento dos organizadores do concurso anual que se viam forçados a pescar na mesma lagoa e a enfeitar com escamas rãs e raias para se parecerem a peixe. Outros defendiam que "nos tempos do make up só existiria feiura onde inexistisse dinheiro. "Tudo se inventa e recria. Até a beleza", argumentavam.
Entre os notáveis e os que só iam para comer sem pagar, os números de presenças eram gordos. Enquanto o "povo em geral" se contentava com a bancada, as mesas ocupavam a zona mais baixa do salão, concomitantemente, a mais próxima do espectáculo. Aqui, a visão era tridimensional. Mesmo assim, duas das mesas dianteiras corriam sempre risco: a do júris e a da entidade organizadora que ladeavam a cabeceira da pista, enquanto a dos governante de topo ficava frente-a-frente com o desfiladeiro onde músicos e candidatos iam fazer vénia antes e depois da apresentação. O júris e os organizadores eram, regra geral, gentes do povo que levavam a vida, no seu dia-a-dia, a tratar por chefe e sua excelência um bom punhado de pessoas com os verbos ser e ter.
-Sabes quem sou eu? - Ameaçou, certa vez, um detentor de café aos ombros.
- Sim chefe. Peço desculpas a vossa excelência, por ser o presidente do Júri, pois é mesmo para vós que julgareis as qualidades e requisitos inseridos no manual, que foi colocada essa mesa lateral dianteira. - Ironizou o jovem, medroso mas polido.
O homem da habitual farda com riscos verticais encolheu os ombros que lhe transportam as divisas de café mas não desistiu. Foi tentar a mesma sorte junto da comissão organizadora onde encontrou passividade e ali se acomodou. E não era o único da sua classe. Anos passavam e anos vinham. O cenário sempre o mesmo. Os que podiam lá estar marcavam presença na fila dianteira, numa das mesas que configuravam a cabeceira da pista. Os outros, ausentes ou impossibilitados,  mandavam olheiros. Todos com uma missão. Ser o dono da Miss. Não importava se a vencedora ou a derrotada. Bastava passar pelo palco e desfilar nos três ou quatro trajes: biquínis, tradicional e vestido formal, quando não houvesse o fio-informal.
E assim, para muitas raparigas desnorteadas bastava deixar de fazer chichi-na-cama para subir à cama do chefe e se transformar também em "chefa" no gabinete, no quartel, no partido e na praça do arreió-arreió. Felizmente, esses tempos não têm volta porque lugar de criança é na escola e de adultos sem juízo é na cadeia!

Texto publicado no Jornal de Angola, Caderno Fim-de-Semana de 12/11/17

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