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segunda-feira, janeiro 29, 2018

NO EPICENTRO DA PEGADA

Desde a minha adolescência, no Libolo, quando Benguela "ficava ainda longe" que ia ouvindo estórias sobre "pegadas" para atrair raparigas, emprego de director nas três Unidades Económicas Estatais ligadas ao café (Libolo I, II e III), pegada para conseguir cargos de comissário ou delegado, pegada da invisibilidade diante das rusgas do ST e PCU, ou ainda pegada para ser nomeado director de escola, internato ou centro médico. Falava-se também em pegada para conseguir encaminhamento escolar para o Sumbe aonde pouquíssimos eram enviados para fazer o curso médio de educação. Em Kalulu, dizia-se que o velho "bruneiro" mais famoso era o Kakwete que se gabava oriundo de Ndombe Grande ou que tivesse de lá "bebido a ciência" da wanga forte e infalível para todas as situações.
Naqueles tempo de primeiros cantos rosados às kilumbas, o que os tímidos mais procuravam era o Kacilingi cimwe. Diziam que "bastava andar com o pauzinho no bolso e esfregá-lo aos dentes quando visse a pretendida" e, no dizer dos crentes, aquilo actuava como tiro certeiro.
Mais mentira do que verdade, alguns jovens tímidos em desfazer-se do nó na garganta iam mesmo ao intrujão que "lhes comia" o pouco dinheiro que conseguiam a muito custo. Felizmente, sempre fui duvidoso dessas coisas e ao chegar à adolescência nunca fui tentado a tais práticas nem as temos, embora respeite os crentes e suas crendices.
Convidado para uma palestra no Seminário Propedêutico de Benguela, decidi fazer gosto ao motor e à estrada impecável para conhecer a tão famigerada comunidade. Ndombe Grande é uma comuna que se situa no caminho costeiro para Namibe, uns cinquenta quilómetros da Cidade das Acácias Rubras.
Parado o carro junto ao mercado da edilidade, fui sarcasticamente perguntando a jovens (rapazes, raparigas) e adultos "onde vendiam o que muitos, por toda Angola, dizem ser forte e inigualável".
- Hoko! Ó mano, é tudo mentira. Aqui "no" tem. Nem Kacilingi cimwe nem migosta. É só mesmo mentira das pessoas.- Recebi como respostas.
Afinal o único medo de Ndombe Grande é somente a distância para lá chegar. O resto são mitos e crendices. Para mim, nada de razão!


Publicado pelo jornal Nova Gazeta a 15.02.2018

sexta-feira, janeiro 26, 2018

NUM CEMITÉRIO DE DAMARALANDIA

À primeira impressão, Mangodinho chegou a pensar que se morresse mais gente em Windhoek do que na Ngimbi.
- Fogo, pá! Não pode. Estou acordado ou sonhando? Como é que num país em que os hospitais não enchem, com carência de porquice, sem moscas e mosquitos a nduta, se vai morrer ao ponto de o cemitério ficar assim tão cheio? Ou quando morre alguém toda família da cidade e do mabululu vai ao funeral?
Nem o sol escaldante de sábado o impedia de andar, pior ainda com essa dúvida que não quer ficar com ela.
Estava no sul de Windhoek. O cemitério estava cheio. A moda é a mesma do país do norte. Uns usam carpideiras para fingir chorar seu morto. A diferença que notou é que aqui não dizem "aí meu filho ou meu pai". Usam palavras e frases uniformes a todas idades e géneros. Outros, é mesmo como na Ngimbi. Vêem-se parentes chiques que têm roupas e óculos só para óbitos e outros parentes que quase se entregam à tumba, fingindo que acompanham o de cujus, mas pura simulação. Sabendo que não seria entendido na sua língua, Mangodinho ainda fez uma agitação.
- Deixem-na ir. Aqui fora está muito quente e pode ser que debaixo da terra esteja mais frio.
Os dâmara todos ouviram mas não deram ouvidos. Se calhar deve ser por causa da língua, mas a tia que estava a se rebolar, pretendendo colocar--se por cima da urna que descia ao solo do descanso, acabou desistindo. Mangodinho bateu-se levemente ao peito e disse para si:
- Me ouviste, n'é? O chão molhou com o chuvisco mas o subsolo é quente!
Ficou ali na multidão vendo e ouvindo. O lápis enfiado no cabelo, ndunda no sovaco e bloco de notas na mão é já sua marca por essas terras. Até dizem, ouvi rumores, que uma equipa de modistas segue Mangodinho para descrever-lhe os gestos e preparar uma grife. Mangodinho, ouvidos atentos e rapidez na consulta ao dicionário e notas no bloco.
- How many people death daylly, here? - Soletrou.
(Quantas pessoas morrem diariamente aqui?)
- We burry ONLY on saturday and sunday because of work abstention (enterramos apenas aos sábados e domingos por causa da abstenção ao trabalho).
- Maravilha, wonderfull, magnífico. Good idea. Vou propor um estudo lá na banda. No campo é difícil ainda, por falta de energia, morgues e etc. Mas na Ngimbi pode ser o ponto de partida. O povo vai resistir mas depois vai gostar, tenho certeza. Primeiro, boa energia a todos os cidadãos. Segundo, boas morgues privadas que concorrem entre si, oferecendo melhor serviço e preço. Depois ficam reunidas as condições objectivas para decretar funerais somente aos sábados e domingos, sendo que aos finados de domingo a quarta vão ao descanso santo ao sábado. Os que nos deixam de quinta a sábado vão descansar eternamente no domingo. Se isso passar no nosso Governo e Parlamento vai diminuir as ausências ao trabalho por motivos de óbitos de parentes e até irmãos de igreja que passam por biológicos.
Mangodinho, com ideias a lhe chover na cabeça, partiu para a hospedaria e traçar o plano que vai submeter ao Executivo e já pensa no discurso.
- Suas excelências, como gestor de Capital humano sei o quanto representam de perdas às empresas e organizações públicas as supostas ausências que nos são reportadas por eventuais causas de óbito. Sabeis também vossas excelências que se dos finamentos não se nos permite duvidar, o mesmo não se passa com o grau de parentesco entre os reportados como mortos e os que se furtam ao trabalho para depois exibirem certidões de óbito. É por isso, excelências, que propomos vossa reflexão e eventual aprovação de uma lei, de aplicação gradativa, que estabeleça dois dias para funerais!

Publicado a 8 de Abril de 2018, no Jornal de Angola

segunda-feira, janeiro 22, 2018

TUDO COMEÇOU NO PORT'AMBOIM

Quando os meus amigos de Benguela começaram, na brincadeira, a hostilizar-me sobre as lamas e poeiras das cidades kwanza-Sulinas do Sumbe e Porto Amboim, parecia-lhes que eu, libolense-kalu-kacokwe-etc, não encontraria escapatória para levar a água ao meu moinho, nem argumentos para a sustentar. Ledo engano dos manos benguelense.
E fui peremptório:
- Mesmo que vocês se tenham lavado no Bocoio, para aonde, me disseram que, migraram os bruneiros do Ndombe, não vão derrubar o "Power" dos meus conhecimentos. E comecei a "desmontá-los assim:
- O que faz de Benguela uma cidade muito conhecida ou que alcunhas tem?
- O Porto do Lobito, as acácias rubras, o flamingo e o Ndombe Grande. - Respondeu um, o que se mostrava mais atrevido a estigar-me.
- Qual foi o trajecto dos Portugas que construíram as cidades litorâneas de Angola? - Voltei a questionar.
Nisso, o que se mostrava mais cauteloso e, por sinal o mais estudado, começou a viajar pelo "disco duro" que carregava na parte encefálica e respondeu:
- Ora, vejamos, Diogo Cão e os seus sucedâneos vieram pelo norte e foram navegado mar abaixo. Pressupõe terem fundado antes as cidades mais a norte da nossa e, assim, sucessivamente, seguindo-se as do interior.
Posto isso, voltei a indagar ao grupo "se conheciam a velha Benguela ou Benguela Velha" e o Samuku, o tal ngimbola inteligente, foi de novo ao seu disco duro e respondeu:
- Foi Port'Amboim, mais velho.
- Então, se:
a) a cidade do Porto Amboim foi a primeira Benguela (nome que provém da corrente com o mesmo nome) ou Benguela Velha, como ficou gravado na História e nos Marcos;
b) Porto Amboim tem acácias rubras;
c) Não se vêem flamingos, mas contam-se estórias sobre tais aves que abundavam na baia e reentrâncias da região de Benguela velha (porto Amboim);
d) o mais velho Kakwete, afamado bruneiro de todos os tempos, era kwanza-sulino e fez tropa no Ndombe onde ensinou a arte do brune;
Vocês vêm dizer que o filho, nesse caso Benguela e tudo o que tem de bom, é melhor do que o pai Porto Amboim?
E foi um velho transeunte quem fechou a conta.
- Para o filho ser bom é porque o pai foi ou é excelente!

Publicado no jornal Nova Gazeta, 01.02.18

sexta-feira, janeiro 19, 2018

TREE, NO CUT!


- Pópilas, pá! Isso é abuso. Um gajo, que já plantou mais árvores do que aquelas que a dita kafloresta da Ilha de Luanda tem, não pode cortar um arbusto? Isso é abuso. Onde é que está essa lei. Eles (referindo-se aos ex-refugiados da Swapo) quando andaram na banda não cortavam árvores? Cozinhavam com o quê?
Andando cansado pelas mulolas, uma espécie de kamundas com arbustos espinhosos, onde lagartos não se contam, Mangodinho procurou cortar um arbusto para fazê-lo de cajado. Era muito sol, muita sede e muito cansaço mas o "atrevido" foi logo cortado.
- It's forbiden, Mr. Mangodinho.
O homem, já mais em arrasto do que caminhando, não se conteve. Sorte é que apenas o guia entendeu, mas o tom malicioso seguido de gestos grotescos não ficou incólume.
- What did he said? - Questionaram os magala de lá, mais polidos do que alguns de cá.
- Not, Dear. He said only that is tared. - Respondeu o guia.
Mangodinho teve de caminhar assim mesmo, com a barriga a indicar-lhe o caminho na frente daquele corpo kambuta. E é já próximo de casa, de regresso, que choca de cara com a SWAPO PARTY SCHOOL.
- Pópilas, pá! Esses gajos em tudo que é bom sabem kabular e inovar. Só nós é que não? Nossa escola do Katambor fecharam porquê? Custava dar-lhe uma outra orientação mais doutrinária do que literária e continuar a forjar os quadros do meu Glorioso em matérias que são agora o cavalo de batalha do Cda JLo? Vou propor uma nova quando chegar à nossa Luanda. E, se me disserem que não têm terreno, entrego o meu de 20/30 no Zango IV.
Mangodinho, homem de ideias, chegou a casa. Corpo cansado, meio sarado, mas cabeça repleta de novas ideias para propor em sua Ngimbi e materializar na sua aldeia de Pedra Escrita e arredores. Já se sussurra em surdina que na próxima remodelação vai subir para administrador comunal, com o fito de implementar as suas ideias revolucionárias em todas as comunidades sob sua jurisdição. E não são poucas!


Publicado no jornal Nova Gazeta de 22.02.2018

segunda-feira, janeiro 15, 2018

UM KWANZA AGRICULTADO: QUE BOM SERIA!

No topo da imaginação e de um monte que me serve de miradouro vejo o Kwanza, maior rio nascido e que desagua em Angola, descendo curvilíneo e preguiçoso, de Dondo a Foz em Luanda, deixando pelo caminho dezenas, senão mesmo centenas de ilhas e ilhotas, umas permanentes e outras temporárias e sazonais. Vejo também nesse delta bi-lateral verdejante o depósito permanente de húmus, de planton arrastados por dezenas de afluentes a montante que cortam savanas, florestas e rasgam montanhas, dando de comer vegetação, animais e  peixes, sendo destes que o homem se faz vivo.
 
E penso nos milhares de quilómetros por agricultar com o dinheiro "preguiçoso" de quem o adquiriu sem muito bregar e o guardou longe do olhar nacional. Quão bom seria se às estruturas de engenharia agrárias deixadas no Bom Jesus, à data da independência, fossem preparadas e agregadas outras de igual ou maior valor. Quão bom seria se todo o vale, bi-lateral, do Dondo à foz do Kwanza, tivesse uma barreira contra inundação e se pudesse agricultar de forma intensa em toda extensão.

Quão bom seria se cada metro quadrado tivesse utilidade agrícola e as águas servissem à navegação turística, à pesca fluvial e ainda à criação de peixe em cativeiro no próprio leito.
 
Que bom seria, se aqueles que têm e podem visitassem o delta no Nilo, no Egipto, que já não é distante, e fizessem do delta do Kwanza um "Nilo" que é, desde a antiguidade, o garante do trigo, demais cereais, pastos para o gado e hortofrutícolas, não deixando o povo egípcio reclamar  de pão. E sobre a força do Nilo, no Egipto, e as potencialidades do delta do Kwanza, em Angola, há muito por contar!
 
Quem bom será, quando as margens agricultadas do Kwanza chegarem, um dia, ao patamar do delta do Nilo. Havemos de lá chegar(?)!

Publicado no jornal Nova Gazeta de 30/11/17, pg. 4

segunda-feira, janeiro 08, 2018

DE EX-LÍBRIS A DEPÓSITO DE LIXO







Contam os mais velhos que "até 1975 o Edifício que suportava a antiga açucareira do Bom Jesus já foi o ex-libris da localidade", ou seja o seu cartão postal.
- Aqui, todos os que vinham para a agricultura e trabalho nas plantações, fossem brancos, patrícios ou contratados do sul, todos, a primeira coisa que pediam para ver era a fábrica da açucareira", conta o septuagenário Domingos Bandeira cuja família aí aportou para trabalhos na construção civil e depois nas plantações de cana-de-açúcar e outras que foram existindo, depois da paralisação da açucareira.
Erguido cuidadosamente com pedra e cal e com alguma variação de tijolo maciço e cimento, a edificação de dois pisos e um sopé de madeira fora projectado para resistir ao vento e à água, contando também com prováveis inundações. A rua, principal, é a da marginal do Bom Jesus, uma barreira de terra criteriosamente seleccionada e compactada, misturada com rochas neolíticas de maior resistência. A parte traseira conservava as máquinas e os fornos, hoje votados ao abandono. Nem só um contador de história no local para animar turistas que muito perguntam sem respostas sábias e prontas.
Verdade ou não, também se conta que, "antes de se edificar o edifício naquele espaço, a natureza oferecia uma nascente de águas termais que foi, entretanto, extinta por acção humana".
Hoje, as ruínas clamam por alguma atenção "museológica" ou similar para manter a memória da serventia que tiveram num passado de glória não muito distante. No espaço contíguo à fábrica foi erguida uma processadora de água, uma assinalável mais valia, tendo em conta a criação de postos de trabalho e o relançamento da industria na região.
O edifício de paredes "fortes e robustas" é hoje um "fraco" a desabar aos poucos, transformado em depósito de lixo e com as mulembas a cuidarem das suas paredes.
E como quem se previne evita males piores, demolição é o que mais se sugere, antes que haja azar para quem por aí passa regular ou sazonalmente instalado na sua viatura ou os tundenge que brincam inocentemente na ternura da sombra do imóvel abandonado.
Algum'alma atenta para ver o que se passa e sugerir alguma serventia? É que mais a baixo, uma já bem conhecida firma agropecuária transformou "terra parada" em verdejantes campos de bananal, videiras e outras culturas, enquanto que na zona norte florescem pujantes indústrias de bebidas.

Publicado no Jornal de Angola, Caderno Fim-de-semana, 26/11/17, pg 10

 
 

segunda-feira, janeiro 01, 2018

ENTRE SETE E SETENTA


Entre as memórias que conservo da primeira urbe da minha vida, Calulo, sede do Libolo, uma delas é, indubitavelmente, a moagem do "velho" Manuel Cunha. É lá que, ainda pequenos, íamos trocar, isso mesmo, trocar milho por farinha do mesmo cereal. E éramos atendidos sem demora. Dependia da coloração do cereal a depositar, geralmente medido em baldes, recebendo, também em baldes, quantidades semelhantes de farinha.

Já em Luanda, a capital das capitais, conheci, tempos depois, a casa setenta de seu filho Oka. Um restaurante famoso por acolher espectáculos musicais, num palco onde já desfilaram vedetas de topo do musicall nacional e mundial.

Tempos depois, de volta a Calulo, onde a moagem do "velho" Cunha não resistiu as intempéries do tempo e à acção vandalizadora dos homens do gatilho, Oka, o filho, ergueu no espaço da antiga moageira uma esplanada, concorrendo, com enorme sucesso, com os restaurantes da pensão e do hotel que ficam a não mais de cem metros. Muitos que adentram aquele espaço, ao se aperceberem de quem é o proprietário, não se coíbem em apelidá-lo de "casa sete". E, por mais incrível que pareça, essa casa está sempre bem frequentada. Muitos e interrogam “onde estará o segredo para tantos fregueses?

Oka, o José Carlos Cunha, mediu o bolso dos seus clientes que com grãos fazem salários de outros conterrâneos que labutam na casa que "olha" para a fortaleza de Kalulo, centro turístico de referência da pequena urbe .

Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta a 11.01.18